A ortotanásia e o Direito Penal brasileiro
Resumo: Nos dias atuais, ante a intensa evolução biotecnológica, é possível prolongar artificialmente a existência de um doente, ainda que a medicina não lhe possa oferecer nenhuma expectativa de cura ou mais conforto nesse fim de vida prolongado. Este trabalho discute os novos aspectos médicos e jurídicos que influenciam as intervenções no final da vida humana, investigando a existência da possibilidade lícita de deixar que o doente morra, sem que sejam utilizados os modernos recursos de prolongamento vital, em face da legislação penal brasileira. A principal conclusão obtida é que a restrição de recursos artificiais não é crime se eles não representam benefício efetivo para o enfermo e se são unicamente condições de obstinação terapêutica. A indicação ou contra-indicação de uma medida é decisão médica, que deverá ser discutida com o paciente e sua família, para garantir a dignidade da pessoa humana em final de vida.
Palavras-chave: Eutanásia. Ortotanásia. Distanásia. Direito Penal brasileiro. Final de vida. Houve um tempo em que nosso poder perante a Morte era muito pequeno. E, por isso, os homens e as mulheres dedicavam-se a ouvir a sua voz e podiam tornar-se sábios na arte de viver. Hoje, nosso poder aumentou, a Morte foi definida como inimiga a ser derrotada, fomos possuí-dos pela fantasia onipotente de nos livrarmos de seu toque. Com isso, nós nos tornamos surdos às lições que ela pode nos ensinar. E nos encontramos diante do peri-
doutoranda em Direito pela Universidade Federal da Bahia
go de que, quanto mais poderosos formos perante ela (inutilmente, porque só podemos adiar.), mais tolos nos
Ética em Pesquisa do Hospital São Rafael/Monte Tabor, Bahia
Há momento para tudo debaixo do céu e tempo certo para cada coisa: tempo para nascer e tempo para mor-rer. Tempo para plantar e tempo para colher.
É antiga a interferência humana no acerca de sua definição precisa1, 2. Atual-momento da morte, mas ganhou especial mente, o conceito mais prevalente relacio-relevância em face da intensa evolução na a expressão com a antecipação da morte biotecnológica ocorrida na segunda meta-
de paciente incurável, geralmente terminal e
de do século XX. Nos dias atuais, é pos-
em grande sofrimento, movido por compai-
sível prolongar artificialmente a existência xão para com ele 3. A necessidade de que a de um doente, ainda que a medicina não conduta eutanásica seja precedida por um lhe possa oferecer nenhuma expectativa pedido do interessado é questão polêmica de cura ou mais conforto nesse fim de e bastante relevante nos tempos atuais, vida prolongado.
em razão da crescente valorização da auto-nomia e da liberdade individual.
Neste texto, discute-se, à luz do Direito brasileiro, em especial do Direito Penal, se Em relação ao sofrimento incontrolável e existe a possibilidade lícita de deixar que o à condição de terminalidade, é algumas doente morra, sem que sejam utilizados os vezes preconizado que esse sofrimento não modernos recursos de prolongamento precisa ser físico, admitindo-se também o vital, ou se a conduta de omitir ou suspen-
sofrimento moral do tetraplégico, o sofri-
der esses recursos configura eutanásia, mento por antecipação do portador de delito de homicídio em nosso ordenamen-
indivíduo em estado vegetativo persisten-te, que declarara previamente preferir a
A hipótese defendida é a de que a restrição morte a tal situação. A noção de antecipar de recursos artificiais não é crime se eles ou provocar a morte é hoje um dos aspec-não representam benefício efetivo para o tos mais lembrados do conceito, servindo enfermo sendo, unicamente, condições de para diferenciar a eutanásia da ortotanásia obstinação terapêutica. A indicação ou (ou limitação terapêutica), em que não se contra-indicação de uma medida é decisão antecipa a morte, deixando-se, sim, de médica, que deverá ser discutida com o procrastiná-la indevidamente. paciente e sua família, para garantir a dig-nidade da pessoa humana em final de Tomando-se os elementos do suposto vida.
conceito de eutanásia, é possível classifi-cá-la das mais diversas formas, o que con-
tribui para dificultar sua definição preci-sa, pois varia conforme a classificação
Dentre os conceitos atualmente relaciona-
adotada. Assim, é possível classificar a
dos com a intervenção humana no final eutanásia quanto ao modo de atuação do da vida, a eutanásia é, sem dúvida, o mais agente (eutanásia ativa e passiva); quanto conhecido. Ainda assim, sobejam dúvidas à intenção que anima a conduta do agente
A ortotanásia e o Direito Penal brasileiro
(eutanásia direta e indireta, também cha-
mada de duplo efeito) e quanto à vontade medida, conforme a sua utilidade para o do paciente (voluntária e involuntária); paciente, optando-se conscienciosamen-quanto à finalidade do agente (eutanásia te pela abstenção, quando já não exerce a libertadora, eliminadora e econômica), função que deveria exercer, servindo dentre classificações menos difundidas.
somente para prolongar artificialmente, sem melhorar a existência terminal.
No que diz respeito à forma de atuação do agente (ou ao modo de execução), divide-
se a eutanásia em ativa, quando decorren-
te de uma conduta positiva, comissiva; e próprio paciente, quando ele deseja tal passiva, quando o resultado morte é obti-
do a partir de uma conduta omissiva. te viver esses momentos ainda que Note-se que as condutas médicas restriti-
vas não devem ser confundidas com a casos, quando o paciente já não tem a eutanásia passiva, embora seja praxe fun-
capacidade de decidir e quando a falta de
di-las. A eutanásia passiva, bem como a indicação deve ser comunicada à família, ativa, tem por busca de resultado promo-
para fins de retirar o suporte, pode ocor-
ver a morte, a fim de, com ela, pôr termo rer que a mesma solicite a manutenção aos sofrimentos. Apenas difere no meio fútil por um tempo determinado, a fim, empregado, que é uma ação numa e uma por exemplo, de aguardar a chegada de omissão noutra. Nas condutas médicas um parente que deseja vê-lo antes da restritivas, o desejo não é matar, mas sim morte, já a caminho. evitar prolongar indevidamente a situação de esgotamento físico – o que caracteriza Mesmo a pedido da família as medidas a ortotanásia.
não devem ser mantidas indefinidamen-te, pois isso implicaria agressão desneces-
Embora sutil, a distinção entre eutaná-
sária ao paciente, o que não é objetivo
sia passiva e ortotanásia tem toda rele-
vância na medida em que responde pela indivíduo pode fazer a opção pelo sofri-diferença de tratamento jurídico propos-
mento adicional, considerando-o válido,
to: a ilicitude desta e a licitude daquela. apesar de medicamente fútil. No sentido Na eutanásia passiva, omitem-se ou sus-
da possibilidade de omissão/suspensão,
pendem-se arbitrariamente condutas que Franco e Stocco4 citam o mestre portu-ainda eram indicadas e proporcionais, guês Figueiredo Dias, sem remissão à que poderiam beneficiar o paciente. Já as obra, entendendo que a vida só deve ser condutas médicas restritivas são lastra-
prolongada artificialmente sem indicação
das em critérios médico-científicos de se essa for a expressa vontade do doente.
No mesmo sentido, Santos adverte: o tica não-profissional. Nenhum médico é médico (e só ele) não é obrigado a intervir obrigado a iniciar um tratamento que é ine-no prolongamento da vida do paciente além ficaz ou que resulta somente no prolonga-do seu período natural, salvo se tal lhe for mento do processo do morrer. Aliviar a dor e expressamente requerido pelo doente5. o sofrimento é considerado um dever médico, mesmo quando as intervenções implicam
Não há, portanto, que se identificar gene-
que a vida pode ser abreviada como conse-
ricamente eutanásia passiva e ortotanásia. qüência6. A ortotanásia, aqui configurada pelas condutas médicas restritivas, é o objetivo Daí a preferência pela expressão condutas médico quando já não se pode buscar a médicas restritivas para indicar atos de cura: visa prover o conforto ao paciente, ortotanásia, em vez de equipará-los à cha-sem interferir no momento da morte, mada eutanásia passiva, negativa ou por sem encurtar o tempo natural de vida omissão, em que, como ocorre na forma nem adiá-lo indevida e artificialmente, ativa, abrevia-se propositalmente a vida possibilitando que a morte chegue na do paciente, a fim de pôr termo mais pre-hora certa, quando o organismo efetiva-
mente alcançou um grau de deterioração incontornável.
Outra classificação de particular interes-se no momento é a que diz respeito à
Todavia, é comum que com a intenção intenção do agente, dividindo a conduta de defender a descriminação da ortota-
de eutanásia em direta e indireta ou de
násia termine-se por defender que a duplo efeito. eutanásia passiva – qualquer conduta de omissão e suspensão de suporte artificial, Casos há em que o paciente, sobretudo o mesmo útil – seja considerada lícita, sem oncológico em fase terminal, sofre dores que se faça referência à intenção do lancinantes, somente controláveis com agente ou à indicação médica dos recur-
analgésicas e sedativas. Nesses pacientes,
mento, de omissão ou de suspensão de a dose terapêutica – necessária para o suporte vital fútil não são nem devem ser arrefecimento da dor – aproxima-se cada considerados atos de eutanásia, mas de vez mais da dose que leva à morte (por exe rcício médico regular.
paralisação do aparelho respiratório, por exemplo). A esse risco acresça-se o fato de
Nesse sentido, Pessini e Barchifontaine que o uso freqüente dessas medicações advertem: iniciar ou continuar um trata-mento que é medicamente fútil ou que não além de reduzir, por seu efeito, a consciên-preveja um efeito benéfico é considerado prá-
A ortotanásia e o Direito Penal brasileiro
Diz-se haver eutanásia de duplo efeito maneira definitiva de acabar com a dor. quando a dose utilizada com o fito de dar Imagine-se que na eutanásia direta o pen-conforto ao paciente termina por apressar-
samento orientador da ação seja: é preciso
lhe a morte, embora a intenção fosse ape-
promover a morte do doente para tirar-lhe a
nas minorar o sofrimento. Note-se que a dor. Ao passo que na eutanásia indireta ou vontade do agente, nesse caso, é livrar o de duplo efeito a idéia seja: é preciso tirar doente da dor, mas sem a intenção de a dor do paciente, ainda que isso aumente tirar-lhe a vida para esse fim. Ocorre, seu risco de morte nesse momento. A morte entretanto, que por se tratar de dor inten-
é, nesse último caso, não a terapêutica em
sa, requerendo altas doses de medicação si, mas o efeito colateral da terapêutica analgésica potencialmente letal – como os indicada e utilizada na única dose sufi-opióides, dos quais é exemplo a morfina –, ciente para a obtenção do efeito desejado: pode ocorrer que a medicação venha a a analgesia. O evento morte não é o que provocar a morte mais precocemente do se busca nessa circunstância, ainda que que o curso natural da patologia o faria. conhecido o fato de ser conseqüência pos-Importante destacar que o consentimento sível da droga em uso. do paciente ou – se não puder consentir – o de sua família, adequadamente infor-
mados dos riscos da medicação adotada, é lise jurídico-penal conduzir à impressão de imprescindível, já que a sedação da dor é que a eutanásia de duplo efeito encerra direito do paciente, mas ele pode preferir uma conduta de dolo eventual (assume-se suportar a angústia física a sofrer o risco o risco da morte, a fim de praticar o ato de ver encurtado seu período vital ou se visado de reduzir a dor) ou, ao menos, de ver privado de consciência pelo uso de culpa consciente ou com representação sedativos em seus momentos finais. A (afasta-se mentalmente a idéia de que o dose não deve ser tal que torne a morte evento indesejado possa ocorrer, embora uma certeza imediata, mas a menor possí-
se o saiba possível), a eutanásia de duplo
efeito é aceita com relativa tranqüilidade. Sabendo-se que toda medicação traz em si
A eutanásia de duplo efeito é também cha-
algum efeito colateral, não parece devido
mada eutanásia indireta, pois a morte é impor a dor sem controle ao ser humano efeito indireto da conduta, resultado cola-
no final da vida, quando há medicação
teral, não buscado. Sua intenção precípua capaz de aliviá-lo, ainda que aumentando é retirar a dor. Distingue-se, assim, da o risco de apressar o desfecho letal pela eutanásiadireta praticada sob a forma da gradativa intoxicação. ministração de drogas em dose letal, quan-do a intenção imediata do agente é a pro-
Tal perspectiva é aceita até mesmo pela
moção da morte daquele que sofre, como Igreja Católica. Em seu discurso sobre a
anestesia, em fevereiro de 1957, o Papa estar do doente em seus momentos finais8. Pio XII7 afirmava que se a administra-
Assim, em regra, verificada a ausência de
ção dos narcóticos causa, por si mesma, animus necandi na prescrição da droga, dois efeitos distintos, a saber, de um lado, que se destinava tão-somente a aliviar a o alívio das dores e, do outro, a abreviação dor, a conduta se torna impunível. da vida, é lícita. Porém, Horta lembra que no duplo efeito é necessário ponderar Paralelamente à definição de eutanásia, se entre os dois efeitos existe proporção outros conceitos relativos à intervenção razoável, de modo que as vantagens de humana no momento da morte são deve-um (analgesia) compensem os riscos do ras importantes para uma tomada de posi-outro (possível piora da debilidade ou ção coerente, no que tange às condutas aceleração da morte).
médicas no final da vida. Se, de modo geral, pode-se dizer que a eutanásia é a
Há autores que consideram a eutanásia de morte antes de seu tempo, a distanásia é, duplo efeito como forma de ortotanásia. por sua vez, a morte depois do tempo; e a Outros, rechaçam o uso do termo eutaná-
ambas se contrapõe a ortotanásia: a morte
sia para essa conduta, preferindo conside-
rar que a morte dela resultante correspon-de a um efeito indesejável de uma medica-
A ortotanásia tem seu nome proveniente
ção necessária. Mantivemos a denomina-
dos radicais gregos: orthos (reto, correto) e
ção de eutanásia de duplo efeito, por já ser thanatos (morte). Indica, então, a morte a tradicional e de entendimento corrente. seu tempo, correto, nem antes nem depois. Embora a consideremos efetivamente Na ortotanásia, o médico não interfere no mais próxima da ortotanásia do que do momento do desfecho letal, nem para homicídio piedoso em si, seguimos a cor-
antecipá-lo nem para adiá-lo. Diz-se que
rente majoritária ao considerar a ortota-
não há encurtamento do período vital,
násia como consistente em condutas de uma vez que já se encontra em inevitável não intervenção prolongadora, onde se esgotamento. Também não se recorre a situam as condutas médicas restritivas7.
medidas que, sem terem o condão de reverter o quadro terminal, apenas resul-
Tem-se, in casu, um conflito de interesses tariam em prolongar o processo de sofrer entre o risco da antecipação de morte e morrer para o paciente e sua família. indesejada e o dever de aliviar a dor, con-
tribuindo para a dignidade do ser humano que padece de doença incurável. Ante a Conforme comentado, é comum existir a ponderação entre a certeza do sofrimento confusão entre ortotanásia e eutanásia intenso e o risco da aceleração de morte passiva, em virtude da posição de não próxima e inevitável, opte-se pelo bem-
interferência médica. Muitos autores as
A ortotanásia e o Direito Penal brasileiro
apontam como sinônimas, mas esse não é A ortotanásia se efetiva mediante condu-o entendimento mais preciso, haja vista tas médicas restritivas, em que se limita o que a eutanásia passiva é a eutanásia uso de certos recursos, por serem medica-(antecipação, portanto) praticada sob a mente inadequados e não indicados in forma de omissão. Nem todo paciente em casu – nomenclatura adotada por Lara uso de suporte artificial de vida é terminal Torreão10. Outros autores preferem a ou não tem indicação da medida. A euta-
denominação limitações de tratamento,
násia passiva consiste na suspensão ou indicando a omissão ou não oferta de omissão deliberada de medidas que seriam suporte vital, sua suspensão ou retirada e indicadas naquele caso, enquanto na orto-
tanásia há omissão ou suspensão de medi-das que perderam sua indicação, por resul-
Mais do que atitude, a ortotanásia é um
tarem inúteis para aquele indivíduo, no ideal1,2,16 a ser buscado pela Medicina e grau de doença em que se encontra.
pelo Direito, dentro da inegabilidade da condição de mortalidade humana. O
No sentido de enfatizar essa distinção, penalista Guilherme Nucci17, define orto-Azevedo define eutanásia passiva como o tanásia quando deixa o médico de ministrar ato de provocar deliberadamente a morte de remédios que prolonguem artificialmente a um paciente por omissão; porém deixar de vida da vítima (sic), portadora de enfermida-prover um tratamento fútil não seria propria-de incurável, em estado terminal e irremediá-mente um ato de eutanásia9. Também Lara vel, já desenganada pela medicina, ao que Torreão pretere a expressão eutanásia pas-
acrescentamos: quando esses remédios ou
siva. Para essa autora, ao se suspender ou medidas já não representam benefício para o omitir medida considerada extraordinária, paciente. Por tudo isso, Verspieren18 critica fútil ou desproporcional não se intenta firmemente a confusão com o termo euta-expressamente matar (intuito que ela násia passiva, o que, segundo ele, colocaria aponta como indissociável da eutanásia), no mesmo plano uma conduta direcionada a mas tão-somente deixar de prolongar arti-
matar e a interrupção ou abstenção de um
ficialmente a vida que definha10. Em sín-
tratamento de manutenção da vida que se
tese, na eutanásia passiva suspende-se ou mostra desproporcionado. omite-se a medida, a fim de matar; na ortotanásia, a fim de não protelar o sofrer A prática da ortotanásia visa a evitar a dis-em vão. No sentido da equiparação entre tanásia que é, por sua vez, a morte lenta e as duas medidas, pode-se citar, entre sofrida, prolongada, distanciada pelos outros autores, Élida Sá, Maria Helena recursos médicos, à revelia do conforto e Diniz, Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo da vontade do indivíduo que morre. Decor-Pamplona e Maria de Fátima Freire de re de um abuso na utilização desses recur-Sá11, 12, 13, 14.
tíferos para o paciente, de maneira despro-
de todos os recursos protelatórios existen-
mento ao lentificar, sem reverter, o pro-
e contra-indicados. Não há um dever de
Quando isso é feito à revelia do paciente A distanásia corresponde à obstinação ou ou como forma de obter vantagens econô-
micas pela utilização de medidas dispen-
tratamento fútil (ou futilidade terapêutica)
diosas e desnecessárias, pela manutenção advém do inglês medical futility e é mais inútil em unidades de terapia intensiva utilizado nos países anglo-saxônicos, espe-(UTI) ou simplesmente para que, por vai-
dade profissional, não se admita o fracasso ca. Obstinação terapêutica, por sua vez, é a das tentativas terapêuticas e a evidente nomenclatura adotada pelos países euro-iminência da morte, defende-se aqui que peus e se origina do francês l'acharnement essas condutas podem encontrar enqua-
thérapeutique (também traduzido como
encarniçamento terapêutico), expressão sur-
tam lesão à integridade física do paciente. gida na década de 50 para indicar o com-Tal característica pode ser atribuída ao portamento médico que consiste em utilizar intervencionismo desnecessário, além do processos terapêuticos cujo efeito é mais cerceamento de sua liberdade, ao mantê-
nocivo do que os efeitos do mal a curar, ou
lo indevidamente no isolamento de uma inútil, porque a cura é impossível e o benefí-UTI, mediante, quiçá, o estímulo a falsas cio esperado, menor que os inconvenientes esperanças, quando se sabe tratar de um previsíveis1, 2, 20. doente irrecuperável, cujos momentos finais poderiam ser melhor e mais tran-
Suspender tratamentos fúteis não é encur-
qüilamente vividos ao lado da família, tar o tempo de vida, é deixar de alongá-lo constrangendo-o a passar por um sofri-
artificial e indevidamente, maltratando o
mento a que a lei não o obriga. Nesse sen-
paciente, sem lhe gerar benefício com isso.
tido, é peremptória a lição de Palmer: sub-
O acréscimo de dias ou horas a uma exis-
meter o paciente a uma degeneração antina-
tência que se tornou um ônus e uma tor-
tural, lenta e muitas vezes dolorosa, apenas tura para o indivíduo, por vezes contra sua por ser tecnicamente possível, não só é inci-
vontade, quando o organismo já se encon-
vilizado e sem compaixão para o paciente e tra em falência global e irremediável, não sua família, mas também violação da liber-
médico. Na definição adotada por Bor-ges21, a obstinação terapêutica é uma prá-
O direito à vida não inclui o dever de adiar tica médica excessiva e abusiva decorrente indefinidamente a morte natural, pelo uso diretamente das possibilidades oferecidas
A ortotanásia e o Direito Penal brasileiro
pela tecnociência e como fruto de uma teimo-
reão24, em consonância com a definição
sia de estender os efeitos desmedidamente, adotada pela Organização Mundial da em respeito à condição da pessoa doente.
Saúde (OMS), são as ações empregadas no paciente terminal com o objetivo principal de
O fato de os recursos existirem não os melhorar a sua qualidade de vida. Não só o torna obrigatórios em todos os casos, mas paciente terminal, mas todos os enfermos, apenas naqueles para os quais estão efeti-
indistinta e incontestavelmente, fazem jus a
porcionalmente útil e benéfica. Nesse mesmo sentido, Roxin adverte que inexiste um dever Quando se fala em omissão ou suspensão jurídico de manter a qualquer preço a vida do suporte vital, geralmente se quer aludir que se esvai. Medidas de prolongamento da ao desligamento ou à não introdução de vida não são obrigatórias, pelo simples fato aparelhos de ventilação mecânica e à omis-de que sejam tecnicamente possíveis22. Na são ou interrupção do uso de drogas que mesma ótica, Carvalho aponta: esses pro-gressos trouxeram consigo a obstinação tera-
(vasoativas). É possível incluir-se também
pêutica, na medida em que a superveniência a ordem de não reanimar. Menos freqüen-da morte passa a ser vista como fracasso temente, discute-se a omissão de métodos médico e a vida tende a ser perseguida e pro-
dialíticos nos casos de vítimas de falência
longada indefinidamente, a todo custo. renal, a não introdução de antibióticos em Não se pode esquecer jamais que a pessoa caso de infecções e, ainda mais raramente, humana não é um objeto, um meio, mas um a suspensão da nutrição e da hidratação fim em si mesmo e como tal deve ser respei-
providas por meios artificiais. A Pontifícia
tada23. A ciência e seus recursos devem Academia das Ciências recomenda que a existir para o bem do homem, e não o nutrição e a hidratação façam parte dos inverso.
cuidados paliativos – que passam a se denominar, então, cuidados básicos – e
Os cuidados paliativos, por sua vez, são não devem ser suspensas por estarem liga-sempre devidos, pois correspondem à prote-
das ao respeito devido no lidar com o ser
ção inafastável à dignidade da pessoa, como humano, à sua dignidade, posição acatada atitude de respeito pelo ser humano. Por por muitos profissionais e estudiosos do cuidados paliativos entendem-se os cuidados Direito. que visam ao conforto do paciente, sem interferir propriamente na evolução da Todavia, há outras posturas, como as de doença e de que são exemplos a analgesia e Beauchamp25 e Hooft26, que se manifes-outras medicações sintomáticas, a higieni-
tam a favor da suspensão da nutrição pro-
zação, a atenção devida à pessoa e à família vida por via artificial em determinadas naquele momento de dificuldade. Para Tor-
situações, nas quais seria considerada des-
proporcional em face da gravidade do A omissão e a suspensão de suporte vital, paciente, quando mesmo processos relati-
cas restritivas, implicam na restrição de
sem profundo e incontornável incômodo. determinados tratamentos, indicados Para esses pacientes a morte está tão imi-
nente que possivelmente advirá em conse-
que o seu uso já não representa vantagem
qüência da patologia, antes mesmo que os para o paciente, apenas prolonga o lento efeitos da inanição pudessem se tornar processo de morrer. Elas versam sobre fatais. O argumento tem procedência, medidas que se revelam desproporcionais, bem como os critérios apontados por esses de forma que sua introdução ou conti-autores para a suspensão, mas cumpre nuidade somente constituiriam obstina-destacar que são casos excepcionais e que ção terapêutica. Isso não significa, de a regra deve ser a manutenção de tais cui-
paciente, de desatenção com a família nem de arbitrariedade médica, devendo
ser alvo de discussão acurada com a equi-
ção e a hidratação são necessidades per-
manentes e inarredáveis da condição humana. Sem o seu provimento, o resul-
Por fim, observação relevante é a de que não
tado morte é certeza e conseqüência ine-
se pode falar em condutas médicas restriti-
vitável. A suspensão de outros mecanis-
vas para a pessoa em morte encefálica, pois
mos artificiais, embora possa, de fato, nessa hipótese, em que a morte já sobreveio, acarretar a morte como conseqüência caso se trate de potencial doador de órgãos direta e mesmo previsível de sua interrup-
e tecidos as condutas médicas interventivas
ção, não é certeza tão inflexível e, se vier atendem ao objetivo de preservar o organis-a ocorrer, teria como causa mortis a pato-
mo para a doação; e, caso se trate de não-
logia que demandou o referido auxílio doador, não mais cabe qualquer intervenção artificial e que já não responde aos demais médica no indivíduo morto, sendo indevida tratamentos. Na suspensão da nutrição sua manutenção artificial. ou da hidratação, a causa da morte é a inanição ou a desidratação provocadas A ortotanásia e o Direito Penal pela atitude médica. Se a intenção é pro-
curar um meio infalível de provocar a morte do paciente, mais digno seria apli-
As regras sociais mais básicas são defini-
car-lhe uma injeção letal, em vez de enfra-
das pelo Direito. Em seu âmbito, o míni-
quecer propositalmente seu corpo durante mo do mínimo ético é dado pelo Direito dias, negando-lhe esses cuidados, até que Penal. O Código Penal brasileiro de 1940 sobrevenha a morte.
precede a revolução tecnológica da segun-
A ortotanásia e o Direito Penal brasileiro
da metade do século XX e não tinha como aplicação da noção de não-maleficência, prever expressamente hipóteses dessa qual seja: a de que, quando a atuação ordem. É a interpretação promovida pelos médica já não for capaz de acrescentar atuais aplicadores do Direito que dará as benefícios efetivos ao paciente, é mister, respostas. Para isso, faz-se mister recorrer ao menos, não lhe aumentar os sofrimen-a outras fontes, que não apenas o forma-
tos, mediante atuação indevida e obstina-
da para tão-somente prolongar impositi-vamente a existência terminal.
Importante recurso nessas circunstân-cias tem sido a bioética, com sua maior O fato de um paciente não possuir indica-capacidade de adaptação ao novo e sua ção de medidas extraordinárias ou consi-rede de princípios que vem sendo cons-
deradas desproporcionais não significa que
truída desde a década de 70, servindo, se deva ter menos atenção com seu bem-nas situações em tela, para nortear o estar. Os cuidados básicos (medidas de profissional no que tange a como se por-
paliação, higiene, alimentação e hidrata-
tar diante do paciente em final de vida e ção) devem ser mantidos, como medidas os limites de uso de seus recursos biotec-
proporcionais que são e direitos interna-
cionalmente reconhecidos aos indivíduos enfermos. Esse tipo de procedimento vem
Juridicamente, discute-se se as condutas sendo freqüentemente discutido, como médicas restritivas são hipóteses de homi-
cídio privilegiado (equiparando-as, por-
tanto, à eutanásia), omissão de socorro ou mero exercício regular da profissão. • Recomendação 779/1976, Conselho Veja-se que o fato de os recursos existirem
cação obrigatória. Os recursos terapêuti-
• II Concílio Ecumênico do Vaticano,
benefício que representem para o interes-
sado. O direito à vida não implica uma
obrigação de sobrevida, além do período
natural, mediante medidas, por vezes des-
gastantes e dolorosas, colocando em séria
Muitas vezes, a adoção de tais medidas
extrapola o que deveria ser para seu bene-
• V Assembléia Geral, Pontifícia Acade-
fício e entra na esfera da mera obstinação
terapêutica. Portanto, é válida, aqui, a
• Parecer 63/2000, Comitê Consultivo co que deixa de reanimar paciente viável,
Nacional de Ética da Saúde e Ciências sem consulta ao mesmo ou à família, por da Vida da França: Final de vida, ter-
sentir-se penalizado ante a vida limitada
que o paciente leva; por fim, o médico que deixa de reanimar paciente terminal,
É perceptível que também a população após discutida com a equipe, a família e o brasileira passa a demandar tais preocupa-
ções, ciosa por tomar a si o controle de medida. seu final de vida, a despeito da medicali-zação do morrer, observada no último Antes de discutir as situações apontadas, século.
convém distinguir duas categorias de omissão: a omissão própria – de que é
No Brasil, o Código Penal vigente pune, exemplo a omissão de socorro – e a omis-em seu artigo 121, parágrafo 1º, ainda são imprópria, exemplificada pelo homicí-que com pena menor, o homicídio impe-
dio por omissão. A omissão própria de
lido por relevante valor moral – identifi-
cado, segundo a exposição de motivos do (omissão de socorro) ocorre quando o próprio Código, com a eutanásia, quando agente, podendo prestar assistência sem esse valor é a compaixão pelo sofrimento risco pessoal à criança abandonada ou do enfermo. Não esclarece, porém, os extraviada, à pessoa inválida ou ferida, ao limites do entendimento do que seja esse desamparo ou em grave e iminente peri-matar alguém, o que cabe à doutrina e à go, deixa de fazê-lo ou, não sendo possível jurisprudência especificar. É fato que ela realizá-lo sem risco, deixa de pedir socor-pode se dar por ação ou omissão. Além ro à autoridade pública que o possa pres-disso, outros tipos penais também podem tar. O Estatuto do Idoso – Lei 10. tangenciar a matéria. Quais os limites 741/2003 –, em seu artigo 97, prevê o entre eles e a conduta atípica, que não tipo de omissão de socorro referente à ofende o Direito?
falta de assistência ao idoso. O delito em questão é apenado com detenção de um a
Tomem-se quatro situações: primeira, o seis meses, pena que pode ser aumentada médico que deixa de reanimar paciente em 50% se da omissão resulta lesão corpo-viável porque a família está inadimplente ral de natureza grave; e triplicada, se resulta com o hospital; segunda, o visitante de a morte. paciente do leito vizinho que, assistindo a mal-estar súbito e grave do indivíduo ao Observe-se que a omissão de socorro lado, deixa de chamar o médico para não exige que o agente seja dotado de socorrê-lo, acompanhando, impassível e nenhuma obrigação de agir específica, curioso, o desfecho letal; terceira, o médi-
A ortotanásia e o Direito Penal brasileiro
dade. Essa circunstância é o elemento ser ele carente de recursos, exempli gratia, de distinção entre a omissão própria e a ou por desejar a liberação do leito. omissão imprópria. Nos crimes omissi- vos impróprios, impuros, espúrios, pro-
míscuos ou comissivos por omissão, o omissão de socorro na hipótese do visitante agente responde não só pela conduta de que deixa de pedir auxílio em prol do doen-se omitir, mas também pelo resultado, te agonizante. No primeiro caso (do médi-salvo se este não lhe puder ser atribuído co que deixa de aplicar as manobras de por dolo ou culpa27. Se assim não for, reanimação indicadas porque o paciente estar-se-á aceitando a presunção absolu-
ta do resultado, com base apenas no omissão imprópria, gerando homicídio por nexo presumido, o que seria criar res-
omissão, uma vez que se tratava de pacien-
ponsabilidade objetiva na omissão. Nesse te viável, ou seja, com indicação para a caso, o nexo e a conseqüente responsa-
medida, e ter o médico agido com dolo de
omissão, não justificado por nenhum móvel
te está por ela obrigado a tentar impedir piedoso. Se o elemento subjetivo foi a culpa o resultado28.
– a negligência na avaliação do doente – ter-se-á o delito de homicídio culposo.
Paulo Daher Rodrigues29 segue a lição de Aníbal Bruno ao entender que quando o Na hipótese do médico que, apiedado com médico interrompe cuidados terapêuticos por a falta de qualidade de vida do doente, serem já inúteis, falta-lhe o dever jurídico deixa de prover-lhe cuidados vitais indica-para agir, não se motivando aí qualquer dos, tem-se uma situação de eutanásia punição. No mesmo sentido, posicionam-
passiva, um homicídio por omissão, privi-
se Élida Sá30 – sua omissão (do médico)legiado pela motivação compassiva do não caracteriza ato delituoso, face à ausên-
agente32. Já no último caso, verifica-se
cia de dever jurídico, se a saúde era objetivo típica ortotanásia, que, segundo entende-inalcançável – e Paulo José da Costa mos, não configura omissão própria nem Júnior31 – não há dever jurídico de prolon-
boa prática profissional. Nesse sentido, temos as lições de Paulo Daher Rodrigues33
Veja-se que, nesses casos, existe a consciên-
e Aníbal Bruno34: há quem veja ainda uma
cia da conduta adotada, assentada sobre hipótese de eutanásia na atitude do médico base coerente de justificação científica e que se abstém de empregar os meios terapêu-visando ao conforto e ao bem do próprio ticos para prolongar a vida do moribundo. enfermo. Diverge, portanto, da mera Mas nenhuma razão obriga o médico a fazer negligência ou da motivação econômica durar por um pouco mais uma vida que de quem deixa de atender o paciente por natural e irremediavelmente se extingue, a não ser por solicitação especial do paciente. por omissão), pode-se tornar conveniente Da mesma maneira, Santos35: nestes casos a edição de norma permissiva específica não existe uma omissão de socorro em senti-
nesse sentido, de modo que se possa aferir
do penal, pois o enfermo não se acha em mais facilmente sua atipicidade, ante a situação de abandono. e, por outro lado, apuração dos dados clínicos registrados tratando-se de incuráveis, uma assistência em prontuário. Essa tem sido a tendência extremada seria ineficaz para impedir a dos anteprojetos de reforma da Parte Espe-morte que se acerca. Nestes casos se fez tudo cial do Código Penal, desde 1984. o que era possível fazer. A obrigação agora passa a ser de cuidado, de paliação, de A ortotanásia nos anteprojetos de conforto, não mais de tratamentos agres-
sivos e não promissores. Engrossam tais locaisfileiras o penalista alemão Claus Roxin22. Em ponto de vista contrário advogam O tratamento penal de questões relativas Paulo Queiroz36 e Fernando Capez37.
ao final de vida tem sido alvo de discussões e propostas de mudança em sua aborda-
Duas observações derradeiras, também gem legal no Direito brasileiro desde pertinentes ao tema, dão conta de que, 1984, quando da reforma da Parte Geral primeiro, tanto na omissão de socorro do Código Penal de 1940, iniciando-se quanto da eutanásia passiva, o elemento um movimento por modificações também subjetivo será necessariamente o dolo, a na Parte Especial. Desde então, tem-se vontade de não socorrer. Por fim, Mirabe-
sugerido mudanças variadas, que vão da
te38 vem lembrar que não se pode imputar isenção de pena para a eutanásia, desde ao médico a morte decorrida da ausência que realizada por médico – com o consenti-de tratamento específico, não disponível mento da vítima, ou, na sua impossibilida-no hospital, se ele em tudo o mais agiu de, de ascendente, descendente, cônjuge ou em conformidade com a lex artis, não se irmão, para eliminar-lhe o sofrimento, ante-tendo conseguido a transferência para cipa a morte iminente e inevitável, atestada outra unidade mais equipada. por outro médico (1984) –, até a afirmação da atipicidade da ortotanásia: não constitui
Entendemos, em resumo, que mesmo na crime deixar de manter a vida de alguém, por legislação atual a ortotanásia (consistente meio artificial, se previamente atestado, por nas condutas médicas restritivas) não é dois médicos, a morte como iminente e inevi-crime, mas sim decisão de indicação ou tável, e desde que haja consentimento do não indicação médica de tratamento. Para doente ou, na sua impossibilidade, de ascen-evitar dúvidas provocadas pela aproxima-
dente, descendente, cônjuge ou irmão – em
ção prática com a conduta de eutanásia redação de 1994, que se reproduziu quase passiva (homicídio privilegiado, comissivo similarmente em 1998 e 1999.
A ortotanásia e o Direito Penal brasileiro
Nota-se, porém, multiplicidade de falhas O fato de que as propostas de reconheci-na abordagem do tema. Se, de um lado, a mento da atipicidade da ortotanásia são, redação atual peca por ignorar a vontade na verdade, tentativas de esclarecer dúvi-do enfermo, enfatizando tão-somente a das, de ratificar o caráter permitido dessa motivação do agente, a redação proposta conduta e a natural inexistência de um em 1984 facilita demais a conduta – o dever legal de manter artificialmente – que contrasta com os cuidados exigidos na por vezes contra a vontade daquele que legislação holandesa, belga e australiana deveria ser o beneficiário dessas inter-(essa, vigente por apenas um ano) em rela-
venções – a vida que se esvai inexorável.
ção à assistência do enfermo que pleiteava Porém, ao fazê-lo de maneira confusa tal solução final.
termina-se por aumentar as dúvidas ao invés de dissipá-las, razão pela qual se
Ao tratar da ortotanásia os projetos não defende a vantagem de um esclarecimen-têm alcançado consenso, sobretudo no to hermenêutico, de interpretação da que tange ao representante legal em caso legislação vigente, a fim de tornar evi-de incapacidade do paciente, sendo que a dente a não punibilidade das condutas de redação de 1998 acrescentou o compa-
limitação terapêutica, quando não indi-
nheiro, esquecido em 1994, e a redação cadas as medidas de prolongamento arti-de 1999 alterou a ordem dos autorizados ficial do processo de morrer. a decidir, sugerindo existir uma hierarquia entre eles, o que é de difícil apuração, Isso, naturalmente, há que ser sopesado senão no caso concreto. As três versões criteriosamente, considerando o quadro mantêm a falha de não esclarecer que a clínico do paciente, suas expectativas, omissão ou suspensão das medidas que ouvindo-o e à sua família, bem como à sustentam artificialmente a vida seja pra-
equipe multidisciplinar que deve assisti-lo,
ticada por médico, no que fica a dever, por recordando-se que a desistência do curar exemplo, ao artigo 128 da legislação atual, não afasta, de modo algum, os cuidados e que, ao prever as possibilidades de aborto atenções devidos ao enfermo e seus fami-legal, determina tal providência, elevando liares. o grau de segurança do permissivo.
Em favor da idéia de que a ortotanásia já
Os projetos de 1998 e 1999 mantinham é legal em nosso sistema, tem-se o fato a eutanásia como delito, porém com de que, à luz da norma constitucional nuanças novas, também suscetíveis de crí-
ticas, mas, ao menos, com o mérito de legislar sobre matéria penal, a Secretaria distinguirem a provocação da morte das de Saúde do Estado de São Paulo publi-circunstâncias em que simplesmente se cou, no fim da década de 90, uma Carti-abstém de tentar inutilmente adiá-la.
lha dos Direitos do Paciente39 cujo item
32 determina que o enfermo tem direito efetivamente úteis ao atendimento de seus a uma morte digna e serena, podendo optar interesses e necessidades pessoais. ele próprio (desde que lúcido), a família ou responsável, por local ou acompanhamento Em sentido semelhante (pró-ortotanásia e e, ainda, se quer ou não o uso de tratamen-
contra a eutanásia passiva, em distinção já
tos dolorosos e extraordinários para prolon-
defendida), o Código de Ética do Hospital Brasileiro42, orienta em seu artigo 8º: O direito do paciente à esperança pela própria
Também em São Paulo, o artigo 20 da vida torna ilícita – independente de eventuais Lei 10.245 prevê que são direitos dos sanções legais aplicáveis – a interrupção de usuários dos serviços de saúde do Estado: terapias que a sustentem. Excetuam-se, VII – Consentir ou recusar, de forma livre, apenas, os casos suportados por parecer voluntária e esclarecida, com adequada infor-médico, subscritos por comissão especial-mação, procedimentos diagnósticos ou tera-mente designada para determinar a irrever-pêuticos a serem nele realizados. XXIII – sibilidade do caso, em doenças terminais. Recusar tratamentos dolorosos ou extraordi-nários para tentar prolongar a vida. XXIV A proposta aqui exposta é a de que assim – Optar pelo local de morte40. Consideran-
deve ser entendida a atual legislação, de
do-se a constitucionalidade dessa norma, maneira que não seja preciso reforma penal vigente há quase dez anos, é de se consta-
para libertar os pacientes de uma indevida
tar que não trata de matéria penal e, por-
obstinação terapêutica. As condutas médi-
tanto, a opção pelo local da morte e a cas restritivas – ortotanásia, portanto – recusa terapêutica não se inserem na esfe-
devem ser decisões médicas, em discussão
ra do homicídio e de sua vedação legal.
com o doente e sua família, pois não repre-sentam encurtamento do período vital,
Acerca da recusa terapêutica, deve-se mas o seu não prolongamento artificial e observar o artigo 15 do Código Civil de precário. Com isso, não se quer dizer que 2002 41, que a consagrou entre os direitos sejam condutas juridicamente insidicáveis da personalidade. O fato de o permissivo (não suscetíveis de avaliação) já que, nos legal falar em ausência de risco de vida termos da Constituição Federal, nenhuma para o exercício da recusa não pode ser lesão ou ameaça de lesão deve ser excluída considerado intransigentemente, haja da apreciação judicial. Quer-se dizer, sim, vista que inexiste procedimento absoluta-
que uma vez questionada a conduta e veri-
mente isento de riscos. O que se destaca ficada a efetiva futilidade da terapêutica nessa norma é exatamente o novo pano-
suspensa, não se há de falar em homicídio,
rama de valorização da autonomia do sequer privilegiado, tratando-se de ato em indivíduo, em face do risco de abuso de plena consonância com o espírito legal e recursos biotecnológicos, nem sempre constitucional brasileiros.
A ortotanásia e o Direito Penal brasileiro
Por fim, breve menção há de ser feita à lução sequer era necessária. Ela não "per-Resolução 1.805/06 do Conselho Federal mite" nada. Só ratifica o já permitido. de Medicina (CFM). Cumpre assinalar, Vem, apenas, dirimir algumas das dúvidas nessa senda, que referendando a interpre-
tação ora defendida – qual seja, a de que pacientes em final de vida, ao assentar a as condutas de ortotanásia são lícitas em conclusão – algo óbvia – de que ninguém é nosso ordenamento – o CFM publicou, obrigado a morrer intubado, usando dro-em novembro de 2006, a citada resolu-
gas vasoativas e em procedimentos dialíti-
ção, assim ementada: Na fase terminal de cos numa UTI. O Direito não pode nem enfermidades graves e incuráveis é permitido tem porque obrigar a isso. A interpretação ao médico limitar ou suspender procedimen-
sistemática da Constituição, notadamente
tos e tratamentos que prolonguem a vida do no que tange à dignidade humana, não cri-doente, garantindo-lhe os cuidados necessá-
minaliza o fato de se optar por morrer em
rios para aliviar os sintomas que levam ao casa, ou sob cuidados que mais se aproxi-sofrimento, na perspectiva de uma assistên-
mem dos domiciliares, como, aliás, sempre
cia integral, respeitada a vontade do pacien-te ou de seu representante legal.
O direito à vida não envolve um dever de
Desde o início essa norma tem sido alvo sobrevida artificial a qualquer custo. Não de críticas por setores jurídicos, a nosso se trata de antecipar o tempo natural de ver infundadas, culminando com sua sus-
vida, mas de vivê-lo até seu termo espon-
pensão liminar em 2007. Por todo o dito, tâneo. A resolução do Conselho Federal parece-nos claro que a abstenção ou a reti-
rada de tratamentos eminentemente homicida, mas salvaguarda, apenas, a fúteis, segundo avaliação médica e do pró-
recusa à tecnologia, quando já não se
prio interessado, não ofende a qualquer mostre benéfica. Não se trata de suspen-das leis penais em vigor, as quais, por defi-
são arbitrária ou utilitarista de recursos
nição, são exceção dentro do universo per-
úteis a pacientes terminais, mas de análi-
mitido de condutas. Já se disse que a ciên-
se de sua falta de efetividade no caso con-
cia e a tecnologia não podem ser punição creto, permeada pelo diálogo e informa-ao doente que nasceu no tempo presente, ção ao paciente e à família, mantendo-se sobretudo quando se considera que trata-
todo o apoio necessário ao conforto dos
mentos e medicações efetivamente neces-
sários sequer são disponibilizados a todos com percuciência e bom senso. Assim os que realmente deles precisam.
não o veda a lei ou a Constituição. Pelo contrário. O que pretende a ortotanásia,
seqüências de fato. Porque, a rigor, a reso-
é a proteção à intimidade, à privacidade,
à autonomia lícita, à dignidade mesma. pode requerer a omissão ou a suspensão de Não se antecipa a morte, mas se a permi-
recursos médicos excessivos e despropor-
te vir a seu tempo. Pensamento distinto cionais (condutas médicas restritivas ou somente favorece a distanásia, e não a limitações terapêuticas) que apenas pro-vida em si 43.
longam a vida terminal, sem melhorá-la, às custas de majoração do padecer do
doente, que se vê manipulado desnecessa-riamente, sob a justificativa de que, com
Ante o exposto, torna-se possível inferir isso, conserva-se-lhe a sobrevivência, em alguns posicionamentos sobre o tema: a verdadeiro processo de distanásia (morte suspensão dos recursos que mantêm arti-
procrastinada com sofrimento), verificada
ficialmente o equilíbrio orgânico no morto na obstinação terapêutica ou na institui-encefálico não é eutanásia nem qualquer ção de tratamento fútil. espécie de delito contra a vida, haja vista que se trata de paciente morto e não ter-
A ortotanásia se distingue da eutanásia
minal. Na hipótese de pacientes terminais provocada por omissão (eutanásia passi-cuja doença se encontra em fase que já va), na qual a intenção de matar é direta, não responde a qualquer tratamento cura-
recorrendo-se, para tanto, à suspensão ou
tivo, de forma que a morte é evento ine-
omissão de medidas que ainda são indica-
vitável, com ou sem a instituição de tera-
das e úteis para o paciente que sofre, mas
pêutica, num prazo de três a seis meses, que não se encontra em estado terminal (segundo define o American College of ou que ainda poderia delas se beneficiar. Physians), considerou-se que a vida não Nas condutas médicas restritivas da orto-deve ser mantida a qualquer custo, contra tanásia o tratamento é inútil e, por isso, a vontade de seu titular. Isso não significa não indicado. relativizar o significado e a importância da vida, pois não se fala em um suposto Tem-se por ponto relevante o fato de que direito de interrupção da existência, mas a eutanásia indireta ou de duplo efeito é sim na ausência de obrigação jurídica de pacificamente aceita como lícita, já que submeter ou de ser submetido a todas as se obedecia adequadamente ao dever de medidas disponíveis, quando confirmada sedar a dor, por exemplo, utilizando-se uma enfermidade terminal. Trata-se de da menor dose possível para a consecu-aceitar a ortotanásia e não de legitimar a ção desse fim. eutanásia.
Convém distinguir o homicídio cometido
A ortotanásia (morte no tempo certo, sem por omissão (o qual pode equiparar-se à antecipação artificial nem abuso de recur-
eutanásia passiva, se executado com moti-
sos científicos que a adiem inutilmente) vação piedosa, fazendo jus ao privilégio
A ortotanásia e o Direito Penal brasileiro
legal) da ortotanásia e da omissão de fere o Direito, pois atua em seu regular socorro. Observa-se que, no homicídio exercício profissional de agir em favor do por omissão, tem-se delito comissivo por paciente (para se mencionar causa de omissão ou omissivo impróprio, quando o justificação consignada no Direito posi-agente tinha o dever jurídico de proteger a tivo), levando-se em conta que o trata-vítima do resultado. Na omissão própria mento suspenso já não fazia efeito con-não se verifica esse vínculo. Na ortotaná-
sia, existe uma decisão médica cientifica-
forto do enfermo. A morte que acaso daí
mente respaldada, no sentido da não indi-
cação de medidas, por serem comprovada-
ocorreu dentro dos trâmites profissionais e amparada por avaliações especializadas.
Mesmo nos moldes legislativos atuais, Nesse caso, a morte veio a seu tempo, já defende-se o entendimento de que pro-
que a medicina apenas poderia, artificial,
longar artificialmente o período vital con-
tra a vontade do interessado é constrangi-mento ilegal, pois não há obrigação jurí-
Parece, pois, que a eutanásia não é uma
ções possíveis para esse acréscimo. Obser-
não se encontra preparada para tal nível
va-se que leis esparsas, sobretudo em São de ingerência no final da vida, o que pode-Paulo, já adotam posições favoráveis à ria abalar a confiança na relação médico-ortotanásia, permitindo entender que paciente, além de representar maior risco regulam uma situação lícita. Assim, a de intervenções por motivações escusas, alteração legal teria por função somente exigindo controle rigoroso dessas condu-esclarecer a licitude das condutas de orto-
tas, a exemplo do que se verifica no mode-
tanásia, razão por que precisa ser revista lo holandês, onde a autorização legal para em seu teor, com o escopo de não repre-
a eutanásia foi precedida de cuidadosas
sentar novas fontes de dúvidas, em vez de pesquisas e requisitos precisos, como a assentar soluções.
realização exclusiva por médicos, com o preenchimento de relatório e comunica-
Nesse contexto, mais relevante do que a ção ao Ministério Público, favorecendo a alteração da lei penal – alvo de projetos verificação da consonância legal. desde 1984, porém com notáveis falhas em seu teor e que somente representaria O fato de se restringirem medidas para o esclarecimento da licitude dessas con-
a manutenção artificial da vida, quando
dutas – faz-se mister a uniformização fúteis, não estará, de maneira alguma, interpretativa de que a conduta do médi-
co que restringe a terapêutica fútil não e suas necessidades, mas, tão-somente,
dando-se preferência à opinião de pes-
dosa, tiver o sujeito ativo cedido a ins-
ção indicada e necessária para aplacar
tenha havido a intenção de matar, não
constitui crime, devendo, entretanto, g) Nas decisões a serem tomadas, devem-ser o risco previamente discutido com
fútil e meramente protelatória, ouvido
legislação e modificáveis pelo interes-
d) O médico que não obedecer aos requi-
sujeitar-se-á às penas do delito privile-
giado, se agiu movido por compaixão, h) A recusa terapêutica é um direito do assim como o leigo que o fizer, mesmo
gida será passível de punição, nos ter-
A ortotanásia e o Direito Penal brasileiro
Artigo adaptado da dissertação de mestrado em Direito Público, defendida pela autora em 17 de março de 2004, sob o título Da eutanásia ao prolongamento artificial: aspectos polêmicos da disciplina jurídico-penal do final de vida, aprovada pelo Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal da Bahia e publicada na íntegra pela Editora Forense, em 2005.
La ortotanasia y el Derecho Penal brasileño
En los días actuales, en frente de la intensa evolución biotecnológica, es posible prolongar artificialmente la existencia de un enfermo, aún que la medicina no pueda ofrecer ninguna expectativa de cura o más conforto en ese fin de vida prolongado. Ese artículo discute los nuevos aspectos médicos y jurídicos que influencian las intervenciones al final da la vida humana, investigándose la existencia de posibilidad lícita de dejar que el enfermo muera, sin que sean utilizados los modernos recursos de prolongamiento vital, delante la legislación penal brasileña. La principal conclusión lograda es que la restricción de recursos artificiales no es crimen si ellos no representan beneficio efectivo para el enfermo y caso de que sean únicamente condiciones de obstinación terapéutica. La indicación o contra-indicación de una medida es decisión médica, que deberá ser discutida con el paciente y su familia, para garantizar la dignidad de la persona humana en final de vida.
Palabras-clave: Eutanasia. Ortotanasia. Distanasia. Derecho penal brasileño. Final de vida.
The acceptance of natural dead at terminal case in Brazilian Criminal Law
Nowadays, after the occurrence of big technological advances in medical area, it is possible to prolong an ill person's life artificially, although Medicine cannot give him hope of cure or health. This study discusses the new medical and legal situations that interfere with the interventions in the end of human life. The point is to decide if there is any possibility of licitly letting terminally ill people die, without employing the modern resources for prolonging life or if the withdrawal of these resources constitutes homicide in Brazilian criminal law. The main conclusion is that the therapeutic limitation to medical action is not a crime if there is medical futility, preventing any real benefit to the patient. The prescription of a medical resource is a medical decision, but it must be debated with the patient and the patient's family in order to protect the dignity of human life.
Key words: Euthanasia. Acceptance of nautal dead at terminal case. Dysthanasia. Brazilian crimi-nal law. End-of-life.
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Maria Elisa Villas-Bôas – m.elisa@ba.trf1.gov.br
Atrophic gastritis has been noted occasionally in gastriccorpus biopsies from patients treated long-term withomeprazole, of which esomeprazole is an enantiomer. Patients undergoing on-demand treatment should beinstructed to contact their physician if their symptomschange in charachter. When prescribing esomeprazole for on-demand therapy,the implications for interactions with otherpharmaceuti
Een kwart eeuw wiegendood in Nederland De incidentie van wiegendood is in ons land vanaf oktoberde statistiek van doodsoorzaken van het CBS. De preva-1987 sterk afgenomen, parallel aan de bestrijding van delenties van risicofactoren bij wiegendoodkinderen (0–23gewoonte om zuigelingen op hun buik te laten slapen. maanden) en in de algemene bevolking bij zuigelingen vanSinds 1987 zijn mee