TEMAS LIVRES FREE THEMES Análise bioética do Código de Ética Odontológica brasileiro
Bioethical analysis of the Brazilian Dentistry Code of Ethics
Monique Pyrrho 1Mauro Machado do Prado 1Jorge Cordón 1Volnei Garrafa 1
Abstract The Brazilian Dentistry Code of Ethics ResumoO Código de Ética Odontológica (CEO) (DCE), Resolution CFO-71 from May 2006, is anbrasileiro, Resolução CFO-71 de maio/2006, é uminstrument created to guide dentists’ behavior ininstrumento elaborado para orientar a conduta dosrelation to the ethical aspects of professional prac-cirurgiões-dentistas sobre os aspectos éticos da práti-tice. The purpose of the study is to analyze the aboveca profissional. O objetivo do estudo é analisar o CEOmentioned code comparing the deontological andcomparando os enfoques deontológico e bioético. Parabioethical focuses. In order to do so, an interpreta-tal, realizou-se a análise interpretativa do CEO e detive analysis of the code and of twelve selected textsdoze textos selecionados, seis sobre bioética e seis so-was made. Six of the texts were about bioethics andbre deontologia, por meio da classificação metodoló-six on deontology, and the analysis was made throughgica das unidades de contexto, parágrafos textuais ethe methodological classification of the context units,itens do código, nas seguintes categorias: os referen-textual paragraphs and items from the code in theciais do principialismo bioético – autonomia, bene-following categories: the referentials of bioethicalficência, não-maleficência e justiça –, aspectos téc-principlism – autonomy, beneficence, nonmalefi-nicos e virtudes morais relacionados à profissão. Oscence and justice –, technical aspects and moral vir-quatro princípios somados representaram 22,9%,tues related to the profession. Together the four prin-39,8% e 54,2% do conteúdo do CEO, dos textos deon-ciples represented 22.9%, 39.8% and 54.2% of thetológicos e dos bioéticos, respectivamente. No CEO,content of the DCE, of the deontological texts and of42% dos itens referiam-se às virtudes, 40,2%, a as-the bioethical texts respectively. In the DCE, 42% ofpectos técnicos e apenas 22,9%, aos princípios. Asthe items referred to virtues, 40.2% were associatedvirtudes relacionadas aos profissionais e os aspectosto technical aspects and just 22.9% referred to prin-técnicos juntos representam 70,1% do código. O CEO,ciples. The virtues related to the professionals andem vez de centrar-se no paciente como sujeito dothe technical aspects together amounted to 70.1% ofprocesso de atenção à saúde bucal, focaliza o profissio-the code. Instead of focusing on the patient as thenal, sendo predominantemente voltado para aspec-subject of the process of oral health care, the DCEfocuses on the professional, and it is predominantlyPalavras-chave Código de Ética Odontológica turned to legalistic and corporate aspects.(CEO), Deontologia, Bioética principialista, Aspec-Key words Dentistry code of ethics (DCE), Deon- tology, Bioethical principlism, Technical aspects,
04451. 70904-970. Brasília, DF. Introdução
da bioética, oferece mais do que a possibilidade decomparar as disciplinas: permite uma interpreta-
O profissional da área de ciências da saúde, especial-
ção mais abrangente das orientações que o código
mente o odontólogo, tem, desde o início de sua for-
disponibiliza e a adequação de sua forma e lingua-
mação, a atuação voltada principalmente para as-
pectos científicos e técnicos, relegando as questões
Para este estudo, será utilizada como referên-
atitudinais da profissão a segundo plano. Dentre
cia a teoria preferencialmente utilizada na bioética,
muitas questões éticas que resultam da prática odon-
o principialismo, embasada nos referenciais teóri-
tológica, as principais remetem à relação profissio-
cos propostos por Beauchamp e Childress7 e seus
nal-paciente. Ainda que configurem questões etica-
princípios prima facie: autonomia, beneficência,
mente persistentes, os conflitos de interesse surgidos
nesta relação não possuem respostas definitivas.
Ao detectar as semelhanças e divergências en-
Este tema é explorado como objeto de estudo
tre a deontologia e a bioética, é possível delimitar
por duas disciplinas. A bioética, uma disciplina
quais vantagens e desvantagens que cada referen-
autônoma fortemente embasada filosoficamente,
cial possui e otimizar a contribuição que podem
propõe a análise e mediação dos conflitos gerados
oferecer, gerando assim instrumentos mais ade-
na aplicação das mais diversas áreas de conheci-
quados à atividade odontológica na sociedade con-
mento relacionadas às ciências biomédicas e da
temporânea, dinâmica tanto em seus aspectos ci-
saúde. Possui um enfoque transdisciplinar, base-
ando-se no respeito ao pluralismo moral e na abor-
O objetivo deste estudo, portanto, é analisar o
dagem dos fatos a partir do paradigma da com-
CEO vigente – um código de construção preferen-
plexidade, entendendo que modelos e soluções
cialmente deontológico – sob a ótica da bioética,
padronizadas não têm êxito ante aos desafios im-
procurando detectar quais são as aproximações
ou distanciamentos, semelhanças ou diferenças,
E a ética profissional ou deontologia, que é his-
vantagens ou desvantagens existentes entre os re-
toricamente relacionada ao exercício das profis-
ferenciais das bases deontológicas/ética profissio-
sões liberais, tem um conteúdo prescritivo e um
nal e aqueles preconizados pela bioética.
corpo de normas ou deveres inerentes ao exercícioprofissional. O conjunto de prescrições baseadasna noção de respeito ao dever e nas obrigações
Metodologia
identificadas socialmente à profissão apresenta-setradicionalmente na forma de código de ética3.
A primeira fase do projeto consistiu em uma leitura
O Código de Ética Odontológica (CEO)4 vi-
exploratória de diversos textos correlacionados ao
gente no Brasil, aprovado pela Resolução do Con-
tema, com o propósito de selecionar doze (12) tex-
selho Federal de Odontologia (CFO) 42 de 2003 e
tos brasileiros específicos, sendo seis (6) deles vin-
modificado pela Resolução CFO-71 de maio/20065,
culados à bioética e outros seis (6) à deontologia/
é uma construção da categoria profissional odon-
ética profissional, além, naturalmente, do próprio
tológica que busca orientar a conduta dos cirurgi-
CEO como documento referencial da pesquisa.
ões-dentistas no que diz respeito aos aspectos éti-
Selecionados os textos, seguiram-se os passos
cos de sua prática profissional. Fruto de uma cons-
indicados pela metodologia de análise de conteú-
trução histórica, teve como primeiro marco oficial
do proposta por Bardin8: pré-análise, exploração
o CEO de 1976, tendo sofrido diversas modifica-
do material, tratamento dos resultados, inferência
ções até o presente momento. Os primeiros códi-
e interpretação. Este método visa à análise do con-
gos foram elaborados por comissões constituídas
teúdo do discurso por meio de inferências, avali-
para este fim. Posteriormente, sua elaboração pas-
ando objetivamente os dados frequenciais obtidos
sou a ser fruto de conferências constituídas por di-
a partir do estudo textual baseado em um parâ-
versas entidades representativas, tornando-se mais
próximo da realidade vivida pelos profissionais da
O momento inicial do estudo consiste no que a
área6. Desta forma, por meio da linguagem usada e
autora chama de “leitura flutuante” 8, uma leitura
da maneira como são abordadas as diferentes ques-
inicial de reconhecimento dos temas abordados
tões e descritas suas atividades, o código manifesta
pelos doze textos e pelo CEO. Posteriormente a
o tipo de reflexão ética a ser observado pelos cirur-
esta fase, foram determinadas as categorias em que
se subdividiram as unidades textuais. Para uma
A análise de conteúdo de um código de ética,
análise dos textos e do CEO sob uma ótica bioéti-
instrumento tão caro à deontologia, sob o prisma
ca, foram usadas seis categorias: os quatro princí-
Ciência & Saúde Coletiva, 14(5):1911-1918, 2009
pios bioéticos – autonomia, beneficência, não-
são autonomia do paciente (autonomia P). Caso
maleficência e justiça – além do tema da “virtude”
seja a autonomia do profissional, como indivíduo
e a categoria que se chamou “técnica”.
ou categoria profissional, referenciada, o item cons-
Segue-se a segunda fase, a “exploração do ma-
tará na subdivisão autonomia do cirurgião-den-
terial”, constituída por uma leitura pormenoriza-
tista (autonomia CD). Respeita-se o mesmo crité-
da de cada texto, subdividindo as unidades de con-
rio nas subdivisões virtude P, ou virtude CD.
texto — parágrafos nos textos selecionados e capí-
Atendo-se ao fato de que o objetivo principal
tulos, seções, artigos e incisos no CEO —, de acor-
do estudo é avaliar o CEO a partir da teoria princi-
do com o corpo de seu texto e seu tema principal.
pialista da bioética, nas unidades que expressassem
Visando à identificação dos referenciais bioéti-
aspectos técnicos, mas que também se referissem a
cos no conteúdo do CEO, o estabelecimento dos
algum princípio bioético, esta classificação sobre-
critérios de classificação iniciou-se com a determi-
punha-se à primeira. Entendendo que os conteú-
nação do referencial teórico principialista, devido
dos morais são mais importantes para o presente
a seu caráter hegemônico dentre as demais pro-
estudo do que aspectos técnicos e formais, a classi-
postas teóricas bioéticas e a sua construção formal
ficação como virtude excluiu a classificação da mes-
que facilita a classificação das unidades de contex-
ma unidade como “técnica”. Estes critérios determi-
to segundo as categorias estabelecidas.
nam que a categorização do item como “técnico”
A categorização das unidades textuais referen-
implica a não adequação a qualquer outra classifi-
tes aos princípios bioéticos respeitou um critério
cação e a ausência de referência moral na unidade.
subjetivo de adequação segundo a conceituação de
O “tratamento dos resultados” finaliza o estu-
Beauchamp e Childress7. Um mesmo item ou uni-
do com o cálculo dos dados frequenciais. Da análi-
dade pode referir-se a mais de um princípio; por-
se desses dados objetivos são derivadas as inferên-
tanto, é possível que seja incluído em mais de uma
cias que possibilitam a comparação das disciplinas
classificação. Isto justifica que, por vezes, a soma
entre si e as conclusões sobre o CEO e os referenci-
do total das unidades em cada categoria seja maior
ais bioéticos e deontológicos nele contemplados.
Durante a leitura prévia à determinação das
categorias que embasariam a classificação, ficou
Resultados
evidente que o conteúdo do CEO e também dosdemais textos analisados não se restringia à refe-
Foi realizada a análise frequencial do CEO e dos
rência dos quatro princípios bioéticos. Assim, fo-
textos de referenciais bioéticos1,9-13 e dos textos se-
ram estabelecidas outras duas categorias com o
lecionados para representar a deontologia na amos-
propósito de criar subsídios para adequar a classi-
tra3,6,14-17. Os textos foram analisados e categoriza-
ficação das unidades textuais de acordo com seu
dos e os dados resultantes foram somados em cada
teor. Às unidades que se referiram a aspectos mo-
rais não relacionados aos princípios, além de con-
Para facilitar a compreensão e interpretação do
dutas profissionais desejadas socialmente, foi iden-
presente estudo, os dados serão apresentados ao
longo do texto na seguinte ordem: inicialmente, os
Por fim, o código analisado, embora seja desti-
dados do CEO serão comentados; posteriormen-
nado a orientar a conduta ética profissional, tam-
te, os dados da deontologia e, por último, da bio-
bém traz em seu conteúdo propostas prescritivas e
ética, para possibilitar a comparação.
referências a aspectos formais, como o conteúdo
A análise específica do CEO compreendeu se-
das propagandas e as penas previstas às infrações,
paradamente os dados pertinentes a cada uma das
que não sentenciam ou denotam qualquer con-
suas divisões: capítulos, seções, artigos, parágra-
teúdo moral. Estas unidades, que explanam a res-
peito de aspectos técnicos, legalistas e conceituais
Os números obtidos da análise de todas as di-
específicos da profissão, no caso do CEO, ou das
visões foram somados e permitem uma visualiza-
disciplinas estudadas, nos demais textos, foram
ção panorâmica do quadro do CEO. Em todas as
classificadas na categoria “técnica”.
divisões do CEO, a categoria virtude foi numerica-
Durante a análise do CEO, foi evidenciada ain-
mente a mais representativa (42%), sendo que
da a necessidade de se criar subdivisões dentro das
29,9% e 12,1% dos itens foram subclassificados,
categorias autonomia e virtude. Estas foram reor-
respectivamente, em virtude CD e virtude P. A cate-
ganizadas de acordo com o beneficiário da condu-
goria técnica veio a seguir com 40,2%. A autono-
ta moral, ou seja, caso a autonomia a ser respeita-
mia foi o princípio mais citado (9%), sendo que
da seja a do paciente, inclui-se o item na subdivi-
3,6% referiam-se a autonomia CD e 5,4% a auto-
nomia P. Seguiram-se a justiça (6,3%) e a não-maleficência (5,8%). O princípio referido com
menor frequência foi a beneficência (1,8%). Osquatro princípios somados alcançaram apenas
No grupo de textos deontológicos, a categoria
técnica foi majoritária (38,5%), seguida da classifi-
cação virtude (34,9%). Dos princípios bioéticos, o
mais referenciado foi a autonomia (11,8%), a jus-
tiça esteve presente em 11,2% dos parágrafos dos
textos e a beneficência, em 8,6% destes. O menos
citado, direta ou indiretamente, foi a não-malefi-
cência, com 8,2%. Os princípios, somados, atingi-
No grupo de textos sobre bioética, a técnica
também foi a categoria preponderante. No entan-
to, sua frequência foi menor (32,4%), do que no
grupo da deontologia (38,5%). A segunda catego-
ria mais citada foi referente ao princípio bioéticoda autonomia (26,1%). Na categoria virtude, fo-ram classificados 22,9% dos parágrafos dos textos
Figura 2. Classificação das unidades de contexto no grupo de
bioéticos. Seguiram-se a justiça (11,9%) e a benefi-
cência (9,1%). O princípio menos citado foi o danão-maleficência (7,1%). Os quatro princípios,somados, atingiram 54,2% (Figura 3). Figura 1. Classificação dos itens do Código de Ética Odontológica.
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mos punitivos àqueles profissionais que não seadéquam às regras, direcionando, portanto, ao le-
galismo, a bioética, em contrapartida, refere-se à
legitimação das decisões morais, atuando por meio
da aplicação de uma ética minimalista para medi-
ar os conflitos, não tendo por obrigatoriedade re-
solvê-los1. Deve sim utilizá-los como oportunida-
de para reflexão e desenvolvimento da capacidade
humana de respeitar as moralidades diversas e com
As categorias de análise escolhidas foram de-
terminadas pelo referencial bioético. Na leitura docódigo, no entanto, já foi possível perceber que os
princípios bioéticos não foram capazes de abarcar
todos os temas abordados, tanto pelo código ser
deontológico e por isso ter temáticas específicas,baseadas em virtudes e aspectos técnicos, como
Figura 3. Classificação das unidades de contextos no grupo de
por entender que a teoria principialista possui li-
mitações e realmente não abrange todas as nuan-ces das reflexões morais.
A semelhança da apresentação gráfica dos da-
dos obtidos da análise do CEO e dos textos deon-
Discussão
tológicos evidencia uma das primeiras inferênciasdo presente estudo: a proximidade encontrada entre
Um estudo desenvolvido a partir do prisma prin-
estes no que diz respeito a sua forma e conteúdo,
cipialista suscita uma série de questões no contex-
distanciando-se dos textos bioéticos, neste senti-
to da bioética. Sua base conceitual, firmada com a
do. O estudo mostra, por exemplo, que o CEO
publicação histórica de Beauchamp e Childress em
teve o índice mais baixo de citações dos princípios
197918, com princípios pretensamente universais,
bioéticos (22,9%) comparativamente com a pró-
foi divulgada por todo o mundo. Posteriormente,
pria deontologia que lhe deu origem (39,8%) e com
recebeu fortes críticas por não primar pela diversi-
dade cultural. É uma vertente bioética direcionada
No CEO, os principais temas abordados foram
à relação profissional-paciente da área biomédica
enquadrados nas categorias técnica (40,2%) e vir-
em geral e de cunho individualista19.
tude (42%), aproximando-se do quadro apresen-
Ainda que se entenda que uma visão estrita-
tado nos textos deontológicos com 38,5% e 34,9%,
mente principialista da bioética não contemple toda
respectivamente. Nos textos de conteúdo bioético,
a pluralidade e capacidade de reflexão moral que
a situação foi diversa e a categoria técnica, com
esta disciplina oferece, o fato de ser esta a corrente
32,4%, foi seguida de perto pela autonomia (26,1%),
considerada hegemônica e de construção episte-
para só então figurar a virtude (22,9%). Destes da-
mológica mais formal, principalmente relaciona-
dos, é possível inferir que os princípios têm uma
da ao exercício profissional e à relação profissio-
maior conotação na abordagem bioética, tendo as
nal-paciente, além das questões estritamente bio-
virtudes uma importância secundária. Esta afirma-
médicas, permite uma verificação objetiva de sua
ção toma corpo quando comparamos o total de
presença no conteúdo dos textos. Daí sua adequa-
itens que se referem aos princípios e à virtude no
ção para detectar a influência bioética nos códigos
CEO com 22,9% e 42%, respectivamente; uma situ-
ação um pouco distinta é observada nos textos deon-
A comparação entre a bioética e a deontologia/
tológicos com 39,8% e 34,9%, e apresentando-se de
ética profissional não é tema novo, sendo inegável
forma inversa à bioética, 54,2% e 22,9%.
a proximidade de alguns de seus objetos de estu-
Mesmo que a representatividade dos aspectos
do. Ambas lidam com a ética, a moral, valores,
técnicos na bioética seja grande, difere muito em
condutas e as relações humanas em geral. Dife-
conteúdo do que é encontrado na deontologia.
rem, no entanto, na maneira como abordam os
Enquanto que, na bioética, esta categoria engloba-
diferentes conflitos. Enquanto a deontologia utili-
va principalmente os parágrafos referentes a ter-
za-se de códigos, prescrições e respostas determi-
minologias e conceitos, na deontologia, o conteú-
nadas, lançando mão muitas vezes de mecanis-
do era predominantemente prescritivo.
A autonomia, como princípio, não é um con-
pios, é muito cultuada nos Estados Unidos e rece-
ceito universal e dentro de um mesmo idioma pode
be severas críticas por levar a uma abordagem
sofrer alteração de significado de acordo com o
muito individualista e por vezes egoísta dos dile-
contexto. No entanto, duas condições essenciais são
unânimes para os teóricos deste tema: a liberdade e
A beneficência, por sua vez, é um princípio que
a capacidade de ação intencional. Assim, é autôno-
se refere a uma ação destinada a causar benefício a
mo aquele que age livremente de acordo com suas
outros7, sendo considerada como o fim das ações
próprias escolhas, tendo sua autonomia diminuí-
de cuidados em saúde. Por vezes, é usada como
da quando é controlado por outros ou impedido
justificativa para se desconsiderar a autonomia do
de agir segundo seus próprios desejos7. A autono-
paciente, o que é chamado de paternalismo. Este
mia possui fundamental importância para o esta-
deriva da passagem, frequentemente despercebida,
belecimento de critérios nas relações de poder, como
do saber ao poder, anulando o paciente como ser
a relação profissional-paciente, por exemplo20.
autônomo22. As relações em que um (o paciente) se
Ainda que pouco citada, a autonomia (9%) foi
coloca sob o cuidado de outro (profissional de saú-
o princípio que mais esteve presente no CEO. A
de) são muito mais suscetíveis a este tipo de condu-
autonomia do paciente (autonomia P) não rece-
ta, pois os profissionais passam a crer que a entre-
beu a importância devida na elaboração do código
ga do corpo do paciente aos seus cuidados lhes
(5,4%), não havendo nenhum capítulo ou artigo
outorga autoridade na escolha do tratamento.
direcionado a esta categoria, ainda que seja mais
O caráter paternalista consagrado na relação
presente do que a categoria autonomia CD (3,6%).
profissional-paciente, embora inicialmente espera-
Este último fato não reflete uma maior valoriza-
do, apesar de verificar-se com frequência na prática
ção da autonomia do paciente em detrimento da
dos consultórios odontológicos, não emergiu da
autonomia do cirurgião-dentista. Reflete sim o
leitura do código. Não houve uma preponderância
caráter prescritivo do código que possui nove itens
numérica da beneficência (1,8%) sobre a autono-
sobre os direitos do profissional e os 215 restantes
mia do paciente (5,4%) na análise do CEO. Estes
sobre seus deveres e normas de condutas a seguir.
dados evidenciam a transferência do foco de aten-
A palavra autonomia não está presente no có-
ção do paciente para um caráter prescritivo, que
digo, tampouco o significado que a teoria bioética
tende à valorização do aspecto da proteção da cate-
lhe atribui. Na leitura dos itens que foram classifi-
goria profissional odontológica em detrimento da
cados nesta categoria, é possível perceber que os
proteção ao vulnerável desta relação, o paciente.
profissionais desta área possuem uma visão seg-
A beneficência foi a categoria menos citada no
mentada deste conceito, como algo a ser conferido
CEO (1,8%) e foi a segunda menos citada nos tex-
e não reconhecido. O caráter prescritivo do código
tos deontológicos (8,6%) e nos textos bioéticos
não é usado na elaboração de um item que obri-
(9,1%). Embora este princípio seja talvez o que
gue o profissional a informar o paciente sobre to-
melhor elucide o papel do profissional de saúde
das as opções terapêuticas (e não apenas as que o
diante de seu paciente23, esta categoria recebeu uma
cirurgião-dentista realiza) disponíveis, para o caso,
baixa valorização. Este fato pode ter duas inter-
delegando ao paciente a livre escolha do tratamen-
pretações: quando uma incipiente abordagem da
beneficência se alia ao pouco respeito à autono-
Apesar de ser o princípio mais referenciado no
mia, conforme o ocorrido no CEO e nos textos
CEO e nos dois grupos de textos, a importância
deontológicos, o sujeito da relação passa a ser o
dada à autonomia diverge muito nos textos estu-
profissional; no entanto, quando a beneficência é
dados. O CEO e os textos deontológicos asseme-
diminuída, mas a autonomia do paciente é respei-
lham-se muito quanto à presença desta categoria,
tada, o que acontece na abordagem bioética, o pa-
com 9% e 11,8%, respectivamente. Já os textos bi-
ciente torna-se o centro das decisões e pleno de
oéticos ressaltam bastante este princípio em seus
conteúdos, sendo que 26,1% dos parágrafos deste
O princípio da não-maleficência relaciona-se
grupo de textos o contemplam. Estes dados refor-
com a obrigação moral de não infligir dano intencio-
çam não somente uma maior valorização dos prin-
nal a alguém. Está intimamente ligada à máxima
cípios bioéticos, mas também uma preocupação
hipocrática primum non nocere e compreende obri-
em legitimar a importância da autonomia como
gações como não causar, impedir e eliminar os da-
algo fundamental para a abordagem ética das mais
nos, fundamentais nas relações estabelecidas no cam-
po da saúde7. Na análise do CEO, esta categoria
A supervalorização da autonomia, por outro
emergiu do discurso, porém de forma muito tími-
lado, utilizada em detrimento dos demais princí-
da. Esta pouca frequência pode estar relacionada ao
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fato de ser um princípio que contém certa obvieda-
ética chegou a apenas 55,3%, mostrando coerência
de em si, já que não se espera de um profissional de
com os demais dados aferidos pela pesquisa.
saúde que ele, durante sua prática clínica, atue com
A valorização das virtudes relacionadas ao ci-
o propósito de causar dano ao seu paciente.
rurgião-dentista e à categoria profissional odon-
No CEO, a categoria não-maleficência (5,8%)
tológica evidencia que o código está voltado para o
foi relacionada a fatores como a recomendação do
lado mais forte da relação. Neste sentido, a pre-
não uso de materiais ou métodos ainda não con-
sente pesquisa diverge diametralmente do estudo
sagrados pela ciência ou a não extrapolação de sua
desenvolvido por Lucato e Ramos25 que, por meio
atuação profissional4, assemelhando-se muito com
de metodologia pouco elucidativa, concluiu que a
a limitação do tema apresentado nos textos deon-
atual versão do Código de Ética Odontológica, di-
tológicos (8,2%), expressando mais uma postura
ferentemente das versões anteriores, coloca o pa-
legalista do que uma reflexão ética. Nos textos bi-
ciente como o centro do exercício da atenção
oéticos (7,1%), apesar da frequência ser semelhante
odontológica25. O estudo aqui apresentado, ao
às anteriores, o sentido usado para este princípio é
contrário, demonstra que o CEO, na sua versão
muito mais amplo e abrange aspectos culturais e
atual, é centrado essencialmente na figura do pro-
ambientais e suas implicações na humanidade,
fissional, cabendo ao paciente um papel coadju-
como é percebido na Declaração Universal sobre
A justiça é, juntamente com a não-maleficência,
um princípio de base coletiva, segundo Gracia24. Conclusão
Esta valoração é pertinente, pois guarda uma rela-ção muito íntima com o acesso a cuidados de saú-
A odontologia é uma ciência com constantes avan-
de, sendo justo todo o tratamento equitativo e apro-
ços tecnológicos que fertilizam seus conhecimen-
priado, levando em consideração aquilo o que é
tos teóricos e refinam sua eficiência terapêutica.
devido às pessoas7. A justiça não é apenas uma dis-
Apesar de seus aparatos técnicos sempre se atuali-
tribuição igualitária dos recursos, compreende a
zarem como resposta à dinâmica ciência moder-
igual consideração dos interesses e a não discrimi-
na, as reflexões éticas evidenciadas no código de
nação de qualquer natureza como seus alicerces.
ética profissional, em vigência no país, não acom-
No CEO, o contexto de justiça (6,3%) é aplica-
panharam as transformações morais constatadas
do principalmente nos itens que abordam o acesso
na sociedade brasileira contemporânea.
a tratamento odontológico e a não discriminação
Na prática odontológica, são frequentes as ati-
dos pacientes. A pouca representatividade na amos-
tudes que demonstram desrespeito aos princípios
tra caracteriza a percepção que o cirurgião-dentis-
bioéticos, por exemplo, quando o paciente não é
ta possui em relação à coletividade e a diversidade.
adequadamente informado ou não possui o direi-
Preocupado com questões, por ele julgadas mais
to de escolher, após os devidos esclarecimentos, o
importantes, não dá o devido valor à questão da
tratamento ao qual será submetido9. O CEO, de
diversidade e à adequação necessária de sua ativi-
conteúdo basicamente prescritivo e formado prin-
dade ao meio sociocultural no qual exerce a profis-
cipalmente de referências a aspectos técnicos, vazi-
são. Os referenciais deontológicos (11,2%) ofere-
os de significado moral, apóia-se em prescrições
cem uma visão legalista da temática da justiça, en-
previamente estabelecidas para resolver os confli-
quanto nos textos bioéticos (11,9%) o sentido que
tos éticos, o que pode dificultar a orientação de
se dá é mais amplo e voltado à coletividade, com
condutas éticas diante da diversidade moral que
temas como a marginalização e pobreza, distri-
buição dos benefícios das descobertas científicas,
Apesar de já na primeira versão do CEO o pa-
ciente ser referido como “a razão e o objetivo de
A soma dos itens referentes às categorias técni-
toda a ciência odontológica”, a leitura do código
ca e virtude no CEO totaliza 82,2% de seu conteú-
atual leva à conclusão oposta. O CEO configura-
do, evidenciando a supervalorização do referencial
se como um instrumento de proteção dos profis-
epistemológico deontológico em detrimento do
sionais, criado por estes para estes, com uma pos-
bioético, valorizando as virtudes, principalmente
tura muito mais corporativista do que se deseja
aquelas relacionadas ao próprio profissional, e
aspectos técnicos, em detrimento de uma reflexão
Divergindo de estudo anterior25, que conclui
embasada nos referenciais bioéticos. A soma das
que o código é um instrumento de novo olhar so-
mesmas categorias nos textos estudados e referen-
bre o ser humano, que ressalta a importância da
tes à deontologia atingiu 73,4%, enquanto na bio-
humanização no atendimento e valoriza a aliança
entre o progresso técnico-científico e as relações
Colaboradores
assistenciais, os resultados da presente pesquisamostram que o CEO sustenta-se em aspectos cor-
M Pyrrho participou da revisão de literatura, elabo-
porativistas e legalistas, com predominância de itens
ração do projeto, análise de conteúdo dos textos,
técnicos e legais, e na valorização das virtudes rela-
tabulação e interpretação dos dados e elaborou a
cionadas com o próprio profissional em detrimen-
redação final do artigo. MM Prado participou da
to dos princípios da bioética. Neste aspecto, a bio-
revisão de literatura, seleção dos textos e revisão do
ética pode proporcionar uma contribuição signifi-
texto final. J Cordón participou da elaboração do
cativa. Com seu estatuto epistemológico mais flexí-
projeto e colaborou na revisão do texto final. V Gar-
vel e menos prescritivo, oferece a possibilidade de
rafa atuou como orientador em todas as fases do
um conteúdo mais adequado à contemporaneida-
estudo, participou da revisão de literatura, elabora-
de das sociedades plurais pós-modernas, como a
ção do projeto, análise de conteúdo dos textos, ta-
brasileira, onde se dá o exercício dos profissionais
bulação e interpretação dos dados, elaboração da
regidos pelo código estudado na presente pesquisa.
redação do artigo e revisão final do texto. Referências
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