As lições do passado colonial na escrita da história de afonso de taunay (1911-1939)
Sérgio Ricardo da Mata, Helena Miranda Mollo e Flávia Florentino Varella (orgs.). Anais do 3º. Seminário Nacional de História da Historiografia: aprender com a história? Ouro Preto: Edufop, 2009. ISBN: 978-85-288-0061-6
As lições do passado colonial na escrita da história de Afonso de Taunay (1911-1939)
Em 1911, Afonso de Taunay (1876-1958) proferiu a aula inaugural do curso de História
Universal na Faculdade Livre de Filosofia e Letras de São Paulo intitulada Os princípios gerais damoderna crítica histórica (TAUNAY, 1914). Com uma clara referência ao livro Introdução aos estudos históricos (1946) de Langlois e Seignobos, Taunay dissertou a respeito dos
procedimentos adequados para a escolha e utilização dos documentos na pesquisa histórica.
Decorridos seis anos da primeira exposição daquilo que considerava a maneira mais adequada
para se escrever a História do Brasil, Taunay se viu diante da possibilidade de colocar em prática
À frente da reestruturação da Seção de História do Museu, Taunay se empenhou desde os
primeiros meses na localização da documentação que necessitava para montar as primeiras salas
que desejava expor até o final do ano de 1917. Para tanto, providenciou a contratação de copistas
reconhecidamente competentes que pudessem reproduzir fielmente cerca de cinqüenta mapas
dos séculos XVI, XVII e XVIII referentes ao Brasil e a São Paulo, em particular, e numerosos
documentos datados de 1550 a 1822 relativos “aos mais importantes fatos do passado paulista
No entanto, além das encomendas, se a História não se faz sem os documentos, quando se
publicam novos documentos deve o historiador logo “fazer História” deles, pois novas fontes
devem ser entendidas como novas peças disponíveis para a composição dos mosaicos da
História. Quanto maior o número de monografias compostas com estas novas peças mais
próximo da verdade estará o historiador e este deve ser o objetivo do seu ofício, é o que dita a
moderna crítica histórica, afirmava Taunay (TAUNAY, 1914).
Entre 1902 e 1903, quando freqüentou o Arquivo Público de São Paulo e o Arquivo da
Câmara da capital, Washington Luís havia pesquisado as Atas da Câmara de São Paulo e o
Registro Geral da Câmara Municipal de São Paulo. Naquele período, afirmou ele, estava
animado em fazer uma relação cronológica das entradas pelo sertão, porém, eleito deputado
estadual em 1904 e tomado após este momento pela vida política e administrativa, publicou
*Professora do Departamento de História da Universidade Estadual do Centro-Oeste (Paraná). Este texto é resultado da tese intitulada Um metódico à brasileira: A História da historiografia de Afonso de Taunay (1911-1939) defendida em 2006 na UNESP-Franca, sob orientação da Profª. Drª. Teresa Maria Malatian. A pesquisa obteve fomento da CAPES e da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo – FAPESP. Carta de Afonso de Taunay enviada aos jornais O Estado de São Paulo, Jornal do Comércio e Correio Paulistano, São Paulo, 22 de dezembro de 1917, APMP/FMP (1ª. entrada), pasta 104.
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apenas o Testamento de João Ramalho em 1905, um grande achado para a época, e um ensaio na
Revista do IHGSP intitulado “Contribuição para a história da capitania de São Paulo: Governo de
D. Rodrigo César Menezes” que seria desenvolvido e publicado em livro em 1918 (LUÍS, 1918).
Daquele período guardou muitas anotações e, em 1956, já afastado da vida pública, lançou a
História da Capitania de São Vicente (LUÍS, 2004). No entanto, das consultas realizadas
naquela documentação não restaram apenas as notas, mas também a intenção, segundo ele, de
facilitar o acesso a tais fontes em razão da necessidade de algum historiador realizar aquilo que
ele havia planejado e somente concretizaria no final da vida:
Eu havia tido lazeres e paciência, anteriormente, para compulsar tais documentos e deles extraí notas. Muitos dos estudiosos da História de São Paulo não teriam tempo para o consumir em investigações de arquivos. Seria, pois, egoísmo imperdoável, não divulgar tais documentos desde que fosse possível. E assim se fez. A publicação dessa documentação valiosa, decifrada em boa letra de forma, em volumes facilmente manuseáveis, iria permitir a estes estudiosos o exame tranqüilo em suas casas, em horas disponíveis, com seguro proveito para a nossa literatura histórica (LUÍS, 2004: 42).
Por ocasião do início de gestão como prefeito da cidade de São Paulo em 1914, Washington
Luís contratou para o trabalho de decifração e transcrição os paleógrafos Francisco de Escobar e
Manuel Alves de Souza e determinou a publicação das Atas da Câmara de São Paulo. Após o
término desta tarefa, eles se debruçaram sobre o Registro Geral da Câmara Municipal de São Paulo e, em 1917, a publicação deste corpus documental resultou em mais de quarenta volumes.
Taunay muito se beneficiou do empreendimento documental e histórico de Washington
Luís. Sob os olhos de Taunay essa documentação tomaria a forma do objeto de composição da
História dos Costumes. Essas novas fontes, entendidas por Taunay, como peças do mosaico
somadas àquelas de que já dispunha no Museu Paulista, conformariam um dos pontos centrais do
seu principal recorte temático: a História de São Paulo.
A partir de 1917, Taunay passou a divulgar as primeiras incurções no terreno das Atas e do
Registro Geral da Câmara de São Paulo nas colunas do Correio Paulistano, jornal oficial do
Partido Republicano Paulista que reunia naquele tempo as figuras proeminentes da administração
pública de São Paulo. A partir da década de 20, quando Menotti Del Picchia assumiu o cargo de
crítico literário e redator político, a redação do Correio Paulistano localizada no epicentro da
vida citadina de São Paulo, o Triângulo, passou a congregar Cassiano Ricardo, Plínio Salgado,
Cândido Motta Filho e Alfredo Ellis Júnior integrantes do grupo modernista Verde-Amarelo.
Neste ambiente de exposição das posições políticas do PRP e da fermentação de idéias
modernistas que eclodiriam durante a década de 20, Taunay obteve um espaço privilegiado de
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divulgação de seus trabalhos. Quase semanalmente publicou partes dos estudos que resultaram
na composição dos primeiros livros nos quais, a partir das Atas e do Registro Geral da Câmara Municipal,escreveu a sua versão da História de São Paulo.
Em 1920, 1921 e 1923, Afonso de Taunay publicou São Paulo nos primeiros anos, São Paulo no século XVI e Piratininga. Inaugurava oficialmente com esta trilogia a já anunciada
narrativa da “conquista do Brasil pelos brasileiros” com as características que marcaram a sua
escrita a respeito do passado colonial brasileiro. Essas características já presentes em muitas
passagens dos estudos publicados anteriormente — tanto naqueles a respeito de Pedro Taques e
frei Gaspar da Madre de Deus quanto nos artigos que compuseram a obra Na era das bandeiras
— apareceram nestas três obras aperfeiçoadas e com o formato não mais de um projeto para uma
História dos costumes no Brasil, mas sim efetivamente na forma de “ensaios de reconstituição
São Paulo nos primeiros anos foi dedicado ao “Dr. Washington Luís Pereira de Souza” em
agradecimento pela publicação da documentação que norteou a feitura do livro. Taunay
Muito tentadora a empresa, não só porque se refere a São Paulo, centro de irradiação da conquista do Brasil pelos brasileiros, primeiro posto avançado da civilização no interior do nosso país, como por oferecer ao comentador o mais pitoresco terreno e até hoje virgem. Não houve, com efeito, nas nossas letras históricas quem empreendesse uma reconstituição no gênero da que procuramos realizar: ressuscitando grande cópia de fatos inteiramente inéditos, salvo quanto a este ou aquele pormenor escasso, aqui e ali colhido, como o fez Azevedo Marques (TAUNAY, 2003: 15-16).
Estavam ali destacadas muitas das orientações que ele havia professado em 1911 para os
alunos da Faculdade Livre de Filosofia e Letras e em 1914 para os consócios do IHGSP e,
principalmente, abria-se a possibilidade de seguir a ordem do mestre Capistrano de Abreu: “Se
você está em São Paulo e quer escrever história faça uma coisa: estude as bandeiras” (TAUNAY,
Taunay tinha em mãos os tão sonhados “fatos inéditos” para “ressuscitar” a respeito da
cidade que representava o “centro de irradiação” das entradas pelo sertão. Realmente era uma
“tentadora empresa” cuja publicação foi financiada pelos cofres públicos do município de São
Paulo e, ainda, revisada, mais de uma vez, pelo escritor e amigo Alberto Rangel (1871-1945).
Rangel morou na Europa durante as décadas de 10 e 20, onde organizou “O inventário dos
documentos do Arquivo da Casa Imperial do Brasil existentes no Castelo d’EU”, publicado pela
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Em 14 de setembro de 1919, quando recebeu as provas da casa editora de Tours, Rangel
Acabo de receber de Tours um pacote com as provas das últimas páginas do seu curiosíssimo livro. E entre parênteses: O título depois que você o encurtou ficou bem melhor. Eu adotaria São Paulo nos primeiro tempos, tanto a palavra anos me soa mal, e tanto mais que ficaria mais de acordo com o livro que pouco diz efetivamente e rigorosamente dos primeiros anos sumidos com o primeiro volume das Atas. Você perdoe-me o desaforo. Você pôs-me em botas com essa revisão. Não sei, muitas vezes, a que me ater. Faltando-me o primeiro volume publicado das Atas, nenhum meio de conferir as citações a esses documentos. E no seu original Taunay, muitas vezes, não se sabe onde acabam as transcrições. E que dificuldade para uniformizar a grafia que diverge nos originais impressos nos jornais. [.] O diabo: felizmente você verá as últimas provas e remediará o desconcertado. Mas, pelo amor de Deus, substitua nas emendas que fizer sua letra garranchenta por caligrafia inteligível [.] Por outro lado, que prazer você me deu com a leitura em primeira mão dessas preciosas e interessantíssimas páginas, andando ao rabisco das inevitáveis coquilles! Quanta coisa impagável nas crônicas dos peludos edis vicentinos e como você soube joeirá-los com tanto carinho, bonomia e clarez
Na versão final, Taunay não tirou os “anos” e nos livros que escreveu posteriormente
também não tomou mais cuidado com os originais, talvez esse descuido possa explicar
parcialmente a velocidade e a quantidade de obras que ele produziu durante a vida. Escrevia tudo
à mão e mandava para a revisão de algum amigo e com o passar do tempo de um profissional e
imprimia, muitas vezes, mais de um livro por ano.
Em âmbito internacional, essa e outras obras publicadas anteriormente contaram também
com a apreciação de Oliveira Lima, o historiador-diplomata pernambucano. Taunay e Oliveira
Lima se corresponderam durante as décadas de 10 e 20 e a principal motivação das trocas de
cartas era o envio de obras e documentos. Oliveira Lima, quando já aposentado e instalado em
Refugio-me no passado das tristezas do presente, e estou trabalhando no arquivo aqui com papéis velhos. Li com muito interesse o seu estudo sobre “Pedro Taques” no J. do Comércio, mas não li o sobre “Gaspar da Madre de Deus”. Onde saiu? Recebo também o Estado, mas faltaram-me uma vez alguns números. Será num desses? Falta-me um volume da Revista do Instituto Histórico de São Paulo, mas neste momento não lhe posso precisar qual – penso ser o 3º. Estou, nos momentos vagos, catalogando a biblioteca, e quando catalogar essa parte, lhe mandarei dizer o volume que me falta para fazer o favor de mandar-me porque tenho a coleção completa e estimo muito tê-la
Essa“paixão bibliófila” (MALATIAN, 2001: 361) cultivada por Oliveira Lima levou-o a
adquirir um amplo e rico acervo que, doado à Catholic University of América – CUA
2 Carta de Alberto Rangel a Afonso de Taunay, Paris, 14 de setembro de 1919, Fundo Alberto do Rego Rangel – Arquivo Nacional, caixa 13, pacotilha 7. 3 Carta de Oliveira Lima a Afonso Taunay, Londres, 25 de janeiro de 1915, Coleção de Afonso Taunay, (2ª. entrada), pasta 4. Contei com a colaboração da Profª. Drª. Teresa Maria Malatian para a transcrição de todas as cartas enviadas por Oliveira Lima a Afonso Taunay coletadas no Museu Paulista.
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(Washington, D.C.), formou a Oliveira Lima Library instalada no campus da CUA oficialmente
em 1924. Portanto, diante dessa dedicação em colecionar obras, Oliveira Lima agradecia
gentilmente aos amigos que lhe ofertavam suas produções.
Esta obra, São Paulo nos primeiros anos, despertou o interesse de boa parte dos sócios dos
Institutos Históricos, principalmente, porque muitos também estavam utilizando aquelas fontes,
recentemente publicadas, em suas próprias pesquisas. O exigente mestre Capistrano de Abreu
que, muitas vezes, criticava os trabalhos de Taunay, enviou-lhe uma carta em abril de 1920
reconhecendo seus méritos e como era de costume, fazendo correções:
Grande parte do dia de ontem empreguei lendo seu livro sobre São Paulo quinhentista. Já estou no meio e hoje ou amanhã devo terminar você proporcionou-me horas agradáveis e a mesma sensação proporcionará aos leitores. Seu método de exposição tornará popular a leitura e é bem possível que a tornem mais atrativa as perífrases, alusões, etc. [.] Depois de completar a leitura, exporei algumas dúvidas. Há uma distração curiosa em seu livro: supõe as câmaras do tempo regidas pelos Filipinos. No trabalho sobre as atas, que comecei, o primeiro artigo devia intitular-se A Câmara de S. Paulo, sobre as Ordenações Manuelina
O recurso lingüístico a que Capistrano de Abreu se referiu “as perífrases” podem definir
não somente a forma utilizada por Taunay nesta obra como em todas as outras que escreveu.
Fazia uso, muitas vezes, de circunlóquios para expressar o argumento principal e se perdia em
meio a tantas palavras e adjetivações. Mas, como afirmou Capistrano, essa forma poderia tornar
mais popular a leitura. Não sei se a tornou popular, mas certamente garantiu um tom emotivo e
dramático ao texto que encantou muitos leitores, como atestam as impressões causadas em
Rangel, João Lúcio, Oliveira Lima e tantos outros autores que se manifestaram em relação a esta
Em São Paulo nos primeiros anos,Taunay buscou apresentar passo a passo a crítica do
documento. No primeiro capítulo, ele expõe ao leitor a fonte em sua exterioridade (como foi e
por quem foi produzida, de que maneira foi escrita e as circunstâncias que envolveram a
transcrição e impressão ocorrida na contemporaneidade) e em sua interioridade (de que temas as
fontes tratam e, principalmente, aquilo que não mencionam). Taunay destacou o quanto era
importante observar o alheamento daquele povo em relação aos acontecimentos extra locais o
que possibilitava ao pesquisador analisar os elementos psicológicos e acompanhar quase que dia-
a-dia os acontecimentos que envolviam aquela sociedade. De posse das informações da crítica
interna e externa da fonte, Taunay considerou que as Atas eram “o reflexo da vida imediata da
4 Carta de Capistrano de Abreu a Afonso Taunay, Três Corações, 12 de abril de 1920. In: ABREU, Capistrano de. Correspondência de Capistrano de Abreu, volume 3; edição organizada e prefaciada por José Honório Rodrigues. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; Brasília: INL, 1956, p. 308-309.
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vila paulistana”, e sob este ponto de vista constituíam “um repositório de dados e elementos
psicológicos de insubstituível valor” (TAUNAY, 2003: 24).
A partir do segundo capítulo, Taunay adentrou o conteúdo do documento e tratou das
primeiras fortificações de São Paulo. Este tema foi abordado a partir dos “incidentes pitorescos”
relatados nas Atas, tal como o que envolveu Domingos Roiz. Contou Taunay, que era comum
que os moradores fizessem buracos ou arrancassem as portas do muro que cercava a vila,
inclusive, alguns moradores até vendiam as portas arrancadas. Domingos Roiz havia sido
intimado pela Câmara para tapar o buraco que ele havia feito no muro. Como o morador não
efetuou o reparo, a Câmara realizou o serviço e lhe cobrou as despesas. No entanto, o morador
enviou uma petição à Câmara para que abrisse novamente a passagem e Taunay narrou os
‘Havia o baluarte caído desde quatro anos’, explicava o pobre diabo. Entaiparem-lhe agora a abertura seria condená-lo a grande incômodo. Eram ‘a terra pobre e as necessidades dela muitas’. Sua mulher ia à roça com as escravas atravessando as derruídas fortificações. Se assim não fosse, precisariam dar enorme volta. À vista de semelhante inconveniente, pois, respeitosamente suplicava o desolado emparedado ‘que lhe dessem licença, para que de novo abrisse a passagem, para que sua mulher e cunhadas e escravas pudessem dela servir-se’. Para Domingos Roiz, ao que parece, não existia a questão do salus populi. Queria as suas comodidades esse egoísta do século XVI. (TAUNAY, 2003: 29-30).
Esta forma bem humorada de narrar os fatos pitorescos encontrados nas Atas pode ser
verificada em diversas páginas da obra e o julgamento das personagens também. Mesmo
defendendo a imparcialidade do historiador, Taunay não se privava de julgar os atos que
considerava inaceitáveis ou de apontar, como no caso citado, como uma ação individual estava
contrária à organização geral da vila que ele vinha narrando desde o início do capítulo.
É no final deste segundo capítulo que Taunay, após ter narrado todas as medidas
administrativas tomadas para a fortificação da vila, apresenta o surgimento da São Paulo que
interessava aos seus objetivos de escrever o passado colonial das bandeiras e ao futuro
Assim, pois, surgiu São Paulo pelo século XVII adentro murado de toscas e rudes taipas como se uma praça de guerra, medieval, fora. É que realmente constituía um posto avançado da civilização e da conquista do Brasil, primeiro marco fixo e inabalável da entrada para o oeste infindo que à nossa pátria dilataria pelas terras imensas do continente, umas legitimamente lusas, outras não, à fé das bulas e tratados (TAUNAY, 2003: 31).
Após ter apresentado o argumento central que justificava a importância de se conhecer a
São Paulo quinhentista, ou seja, era preciso desvendar de que maneira se organizou aquele lugar
e aquela sociedade de onde partiriam no próximo século as bandeiras desbravadoras do Brasil,
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Taunay passou a descrever em minúcias os acontecimentos registrados entre os anos 1554 e
1601 nas Atas e no Registro Geral da Câmara, sempre confrontados com algumas obras
coloniais e contemporâneas conhecidas.
São diversos os temas tratados na obra e os principais interesses de Taunay recaíram
sobre as atribuições daqueles que administravam a vila, de que maneira eram realizadas as
eleições, as dificuldades técnicas e financeiras para se construir o primeiro paço municipal, o
mobiliário da casa da Câmara, a ereção do pelourinho, a construção da forca que, por muitas
vezes fora ereta e outras tantas derrubada, a organização da justiça paulistana, a primeira cadeia,
a impunidade, o primeiro grande crime, os desejos de construção da primeira matriz, as
confrarias, as irmandades, o espírito de independência da Câmara municipal, o amor à
autonomia, as finanças, as primeiras preocupações urbanas, os arruamentos, o abastecimento de
água, a superintendência de polícia e a “repressão de escândalos públicos”, as questões de
higiene e saúde pública, a organização do trabalho, a vida econômica, “a marmelada, primeiro
objeto da exportação paulista”, o rudimentar comércio, “a pobreza e o desconforto dos lares, a
ausência de mobiliários, falta de utensílios e objetos comezinhos à vida civilizada” os inventários
pobríssimos, as posturas sobre lavouras e criações, a viação urbana e vicinal, o caminho do mar e
os mais antigos visitantes de São Paulo.
Com um olhar voltado para os costumes dessa sociedade que enfrentava diversas
dificuldades para se organizar, Taunay percorreu as fontes tentando descrever os temas que ali
ele encontrava. Como era de se esperar, essa narrativa não apresenta a neutralidade anunciada
pelos “princípios gerais da moderna crítica histórica”. A busca pela verdade dos fatos passa pelo
crivo do historiador que escolhe, direciona e encaminha sua argumentação para provar a
afirmação, apresentada no final do segundo capítulo, de que São Paulo era realmente um posto
avançado da civilização e que de lá saíram no século XVII os paulistas responsáveis pela
Em algumas passagens é possível verificar esse encaminhamento. Pautado nos costumes
das pessoas do lugar, os paulistas, Taunay afirma: “Assim, parecem-nos sobejamente
demonstrados o espírito de independência, a oposição à prepotência, do povo de São Paulo,
desde as primeiras décadas quinhentistas” (TAUNAY, 2003: 9). Taunay apresenta as atitudes
administrativas como se estivessem voltadas para a realização do destino manifesto de São Paulo
ser “a capital opulenta hodierna”: “Urgia manter rigorosa disciplina naquele posto avançado da
civilização perdido entre as selvas, que era São Paulo e essa disciplina, entendia-o a Câmara,
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precisava basear-se, sobretudo, no respeito à autoridade” (TAUNAY, 2003, p. 21). Ao
encaminhar a narrativa para o final do século XVI, próximo aos anos que antecederam as
primeiras entradas pelo sertão, Taunay afirma: “De ano para ano tomava a Vila aspecto mais
civilizado, mais organizado” (TAUNAY, 2003: 173).
O livro não termina com um capítulo de conclusão, pois era apenas um primeiro trabalho
ao qual se seguiriam outros já escritos quando da publicação deste e alguns planejados para os
quais ele ainda buscava apoio e documentação.
Dessa forma, foi lançado no ano seguinte, em 1921, São Paulo no século XVI que se
poderia pensar ser o mesmo livro, pois o recorte geográfico era São Paulo, o recorte temporal era
o século XVI e a documentação anunciada no prefácio eram as Atas e o Registro Geral da Câmara de São Paulo. Então, afinal o que teria ficado sem historiar da São Paulo quinhentista
que precisava de mais um livro? Faltou historiar aquilo que as fontes que se avolumavam no
Museu Paulista dia-a-dia podiam acrescentar às Atas e o Registro Geral da Câmara de São Paulo e aos estudos já existentes a respeito tema. Assim como no livro anterior, muitos artigos
também foram publicados, primeiramente, no Correio Paulistano em 1918 e a edição contou
com o amparo dos poderes públicos municipais. No prefácio, Taunay esclarece que novamente
precisou recorrer a Alberto Rangel “para o penoso e enfadonho trabalho da confecção do
volume. Dele se desempenhou com o maior carinho”, o que significava para Taunay mais uma
demonstração “da velha e boa amizade” que mantinham. Taunay fez um agradecimento ainda
mais especial que o anterior, relativo à revisão do São Paulo nos primeiros anos, porque Rangel,
enquanto revia as provas do livro de Taunay, finalizava o seu próprio livro que tratava também
de “quando o Brasil amanhecia” (TAUNAY, 2003: 203). Assim, Taunay se referiu ao livro de
Alberto Rangel, publicado em 1919, Quando o Brasil amanhecia (fantasia e passado)
(RANGEL, 1919) o qual acompanhou a elaboração e edição por meio das trocas de muitas
Após a publicação de São Paulo nos primeiros anos em que se deteve no acompanhamento
daquela documentação, transcrita e impressa pelo governo municipal de São Paulo, dividindo-a
em temas e descrevendo-a quase que ponto a ponto, detalhe a detalhe, Taunay começou a
aprofundar seus estudos, principalmente, motivado pelas obras que chegavam à biblioteca do
Museu Paulista e pelas inúmeras cartas que recebia apontando as deficiências e os pontos em que
devia se aprofundar. Diante disso, São Paulo no século XVI é o resultado das informações
retiradas das Atas e do Registro Geral da Câmara de São Paulo somadas e confrontadas com os
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estudos que realizou das obras e descrições de frei Gaspar da Madre de Deus, Pedro Taques,
Robert Southey, Francisco Adolfo de Varnhagen, Padre Manuel da Nóbrega, José de Anchieta,
Frei Vicente do Salvador, Pero de Magalhães Gandavo, frei Antônio de Santa Maria Jaboatão,
Gabriel Soares de Souza, Padre Simão de Vasconcelos, Eschwege, Marcgraff, Guilherme Piso,
dentre outras. Na obra anterior, alguns desses autores estavam presentes, mas não ditavam os
Outra diferença marcante está nos autores contemporâneos que Taunay utilizou para compor
o segundo texto. Enquanto, em São Paulo nos primeiros anos ele citou informações e opiniões
de Capistrano de Abreu, Orville Derby, Teodoro Sampaio, Padre Pablo Pastells, Cândido
Mendes, Artur Neiva e Washington Luís, em São Paulo no século XVI somaram-se a estes
autores Benedito Calixto, Ricardo Gumbleton Daunt, Brasílio Machado, Basílio de Magalhães,
Eduardo Prado, Alberto Rangel, Barão de Studart e José Veríssimo. A maior parte destes autores
passou a se corresponder com Taunay neste período, entre a divulgação dos primeiros artigos em
1917 no Correio Paulistano e a publicação das obras.
A consulta destes variados autores levou Taunay a recriar uma São Paulo quinhentista com
temas diferentes daqueles do primeiro livro. O enfoque voltado para os hábitos e costumes
continuou presente, mas ao se debruçar sobre a produção das cartas jesuíticas, outras faces da
História de São Paulo foram privilegiadas.
O livro começa com as circunstâncias que envolveram a fundação de São Paulo e segue
narrando o cotidiano da instalação dos missionários em São Paulo e as dificuldades de
catequização dos indígenas. São relatadas várias cenas pitorescas da catequese, os resultados da
evangelização, a influência da música na catequese, a oposição jesuítica ao movimento de
escravização do indígena, enfim, os temas das fontes pesquisadas novamente definiram os
A obra termina ao se referir rapidamente à entrada pelo sertão de André Leão em 1601 “cuja
importância nunca é demais encarecer, observa com toda a justiça Basílio de Magalhães — o
passo inicial dos paulistas em relação à Sabarabussú, aos Cataguazes, a Goiás, a Mato Grosso”
(TAUNAY, 2003: 416) e à bandeira de Nicolau Barreto realizada em 1603, porém elas não
foram estudadas detidamente, pois “pertencem ao século XVII e escapam ao nosso quadro”,
Ainda na introdução, Taunay justificou a delimitação temporal da seguinte forma:
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Nada geralmente mais esdrúxulo do que o critério da subordinação dos fatos históricos às
efemérides seculares, interrompendo-se o estudo, a descrição de uma fase evolutiva para que se
não transponha um marco, cuja particularidade única venha a ser a da contagem centenária dos
anos. Ocorre, porém, com a história de São Paulo uma particularidade: coincidem os primeiros
milésimos do século XVII exatamente com o desabrochar de um período inteiramente novo, o da
ativação das entradas produzida pelas instigações de D. Francisco de Souza aos paulistas.
Até 1596 viveu a vila paulistana absolutamente incerta do seu porvir; seria possível manterem-se os brancos no planalto? Não os obrigariam os silvícolas a um retrocesso para o litoral? As campanhas de Jorge Correa e, sobretudo, as de João Pereira de Souza desafogaram a situação de Piratininga; desanuviou-se-lhe o futuro. Logo depois, a presença, a ação e incitamentos de D. Francisco de Souza consolidavam de todo a situação, e lançavam-se os paulistas na senda definitiva das grandes entradas, com André de Leão, em 1601, e Nicolau Barreto em 1603. Assim, pode-se dizer que a primeira fase da história de São Paulo finda com o século XVI (TAUNAY, 2003: 202).
No plano inicial, Taunay trataria da segunda fase de São Paulo em Piratininga, obra
publicada em 1923. Mas nas 173 páginas deste livro ele retomou o mesmo modelo de
apresentação das Atas e do Registro Geral da Câmara de São Paulo empregado em São Paulo nos primeiros anos, descrevendo as ruínas do primeiro paço municipal, os projetos de construção
da cadeia, os problemas ainda encontrados para se construir a igreja matriz, o comércio, a
economia, os impostos, os preços dos alimentos, a questão do tráfico vermelho, as casas e o
mobiliário, ou seja, os temas tratados pelos documentos pesquisados. Apresentou este volume
como mais uma peça do mosaico que deveria se somar a estudos mais aprofundados do século
XVII. Para tanto, ele planejava e, como havia anunciado a Alberto Rangel, já havia escrito os
quatro volumes da História Seiscentista da Vila de São Paulo e, como mostra o prefácio
assinado em 1923, também já estava pronto o primeiro volume da História Geral das Bandeiras
Para usar uma linguagem próxima ao objeto de estudo de Taunay e também muito
característica de sua compreensão de como deveria ser escrita a História do Brasil, os estudos
das Atas e do Registro Geral da Câmara de São Paulo abriram a picada no sertão ainda ignoto
da História de São Paulo. A partir desses trabalhos, Taunay descobriu quais fontes deveria
buscar e os livros que precisava conhecer e pôde, assim, desbravar os séculos XVII e XVIII.
Séculos em que, segundo ele, o Brasil foi descoberto pelos brasileiros.
Os fundamentos modernos de escrita da História defendidos por Taunay ensinaram ao
presente da década de 20 as lições a respeito do passado colonial que ele considerava necessárias
Sérgio Ricardo da Mata, Helena Miranda Mollo e Flávia Florentino Varella (orgs.). Anais do 3º. Seminário Nacional de História da Historiografia: aprender com a história? Ouro Preto: Edufop, 2009. ISBN: 978-85-288-0061-6
Bibliografia
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TAUNAY, Afonso de E. São Paulo nos primeiros anos: ensaio de reconstituição social; São Paulo no século XVI: história da vila piratiningana. São Paulo: Paz e Terra, 2003. (A primeira
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______. Piratininga: aspectos sociais de São Paulo seiscentista. São Paulo: Tipografia Ideal;
______. Os princípios gerais da moderna crítica histórica. RIHGSP, v. XVI, p. 323-344, 1914.
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